Na primeira meia hora, O Turista parece pretender um revival do enredo no qual um personagem entra de gaiato em um navio (no caso, em um trem): um sujeito comum confundido com outro que estaria sendo perseguido. Este tema do “homem errado” remete a vários filmes clássicos de Hitchcock, mas o encaminhamento dado pelo roteiro e direção de Florian Henckel (A Vida dos Outros) von Donnersmarck tenta encontrar o clima mais borbulhante de Charada do que da maioria dos filmes de Hitchcock. Charada até foi considerado “hitchcockiano” quando de seu lançamento há quase 50 anos, mas seria, no máximo, uma variação mais leve (com um pouquinho mais de nonsense) do formato mais habitual do mestre do suspense (ao qual não faltava humor, é verdade, mas também possibiltava eventuais reflexões metafísicas e psicanalíticas). A associação era favorecida pela presença de Cary Grant no elenco, mas deixando de lado o velho Hitch, Charada ainda se sustenta muito bem em incontáveis revisões como uma das melhores realizações de Stanley Donen, um dos melhores desempenhos em comédia de Audrey Hepburn (e de Cary Grant) e uma das melhores trilhas musicais de Henry Mancini.
O problema de O Turista jamais seria trocar Paris por Veneza; ou não ter em sua receita os mesmos talentos reunidos em Charada (que se dava ao luxo de Walter Matthau e James Coburn em papéis coadjuvantes): aliás, O Turista reúne (inutilmente) diretor, fotógrafo, compositor e roteirista bastante premiados, mas é incrível que um dos roteiristas tenha sido o mesmo de Gosford Park, de Robert Altman. Porque desta vez o roteiro (remake de um filme francês de 2005, Anthiny Zimmer - a Caçada) desanda a ponto de ficar ruim de doer. Paralelamente, a direção, que parecia ser academicamente correta e dar para o gasto, vai se revelando com mão pesada para a leveza pretendida, leveza que vai ficando cada vez mais insustentável.Não é mera coincidência que os atores (incluindo Johnny Depp, ainda mais apático do que ultimamente) pareçam tão mecanizados quanto seus inverossímeis personagens e situações.
A questão da verossimilhança não se refere a uma tola cobrança de “realismo” em filmes deste gênero: a questão é a plausibilidade dentro do absurdo das situações. Ou seja, uma diegese coerente consigo mesma, por mais que se distancie do mundo dito real para mergulhar na ficção desenfreada; só que a ficção, desenfreada ou nem tanto, mais do que favorecer a “suspensão da descrença” necessária para a fruição da diversão, deve até mesmo induza-la. Hitchcock fazia isso em quase todos os seus filmes, e o mesmo ter sido conseguido em Charada foi o que fez com se visse o filme de Stanley Donen como “hitchcockiano”. Mas nada nesse sentido funciona bem em O Turista, reduzido a belos exteriores naturais de Veneza, interiores luxuosos e um desfile de roupas e jóias usadas por Angelina Jolie
Depois de um início que poderia ser considerado um pouco promissor, a coisa deteriora completamente, chegando ao ridículo em uma cena de baile que se pretende engraçadinha com dança coreografada pelos pares que fazem fundo aos protagonistas (que saudade da “dança da laranja" com a fruta presa entre o queixo de Cary Grant e o enorme busto de uma senhora no mencionado Charada). Para completar, a “solução” do roteiro usa um recurso na base “deus ex machina” sem inspiração e que parece querer zombar da inteligência do espectador para suas “viradinhas” e mudanças de rumo nas expectativas tolamente criadas e mais tolamente ainda reviradas ao avesso.
A produção sofreu inúmeras marchas e contra-marchas, com trocas de ator principal e de diretores, incluindo saída e retorno de von Donnersmarck. Ele deve estar arrependido de não ter abandonado o filme de vez (salvo se seu cachê era muito bom). Angelina Jolie teria declarado que só fez o filme para dar um pulinho em Veneza. Não é preciso dizer mais nada. Aluguem ou comprem o dvd de Charada e revejam pela décima vez: mesmo conhecendo cada cena, ainda guarda mais suspense e charme do que esse malfadado filme..
# O TURISTA (THE TOURIST)
País, 2010
Direção: FLORIAN HENCKEL von DONNERSMARCK
Roteiro: FLORIAN HENCKEL von DONNERSMARCK, CHRISTOPHER McQUARRIE JULIAN FELLOWES
Fotografia: JOHN SEALE
Edição: JOE HUSTHING e PATRICIA ROMMEL
Direção de Arte: SUSANNA CODOGNATO e MARCO TENTRINI
Figurino COLLEEN ATWOOD
Música: JAMES NEWTON HOWARD
Elenco: JOHNNY DEPP, ANGELINA JOLIE, PAUL BETTANY.
Duração: 90 minutos
Site oficial: http://www.sonypictures.com/movies/thetourist/