Uma das primeiras imagens de O Vencedor é a cartela com a informação “baseado em fatos reais”, uma espécie de carimbo que Hollywood usa e abusa para tentar salvar filmes que não soam verdadeiros para o espectador. No caso de O Vencedor, ela era completamente dispensável. Desde o início já acreditamos que se trata de uma história verdadeira, mesmo que ela não fosse.
Quando o policial/treinador Mickey O´Keefe está em cena, não é preciso ser crítico de cinema ou expert em boxe para perceber que se trata de um não-ator (O´Keefe, o antigo treinador de Micky Ward, está interpretando a si mesmo). Daí olhamos para a família Eklund, aquelas irmãs louras com cabelo esquisito e fumando sem parar, e temos a impressão de estarmos diante daqueles fantásticos exemplares do proletariado britânico que Ken Loack, Mike Leigh e o Stephen Frears dos velhos tempos nos proporcionaram. Sobra realismo também nesses camaleões chamados Melissa Leo (que já tinha merecido um Oscar por “Rio Congelado”) e Christian Bale.
É impossível não se comover com Bale em cena. Ele incorpora a fragilidade emocional de seu personagem de tal maneira que a reação de muitos pode ser até de estranhamento, imaginando que ele possa estar exagerando (“overacting”). Daí você espera até os créditos finais e vê, por alguns segundos, o verdadeiro Dicky numa cena documental. Se havia alguma dúvida de que Christian Bale é um dos maiores atores vivos, ela se acaba ali. “Pobre” Mark Whalberg, que com sua frieza e candura é o contraponto perfeito ao explosivo Bale, tem grande atuação, mas não é a sua imagem que fica na memória quando o filme termina.
Boa parcela do mérito de O Vencedor deve ser atribuída ao diretor David O. Russell. Ele é mais conhecido em Hollywood pelo temperamento explosivo e barraqueiro. Quando realizou Três Reis (1999), um dos melhores e mais criativos filmes de guerra das últimas décadas, quase saiu no tapa com George Clooney, um dos atores principais. Durante as filmagens do irregular “Huckabees – A Vida é Uma Comédia”, em 2004, ele teve um ataque de fúria contra a atriz Lily Tomlin, que virou hit no youtube. Seria melhor que ele fosse conhecido apenas por seu talento, porque isso Russell tem de sobra, como mostra em O Vencedor. Foi bastante interessante sua opção, em plena época dos efeitos especiais mirabolantes e texturas “ultra high definition”, por filmar as cenas de luta com a textura de uma imagem de televisão, estruturando o filme como um documentário da HBO dos anos 90, captando a atmosfera decadente da cidade de Lowell.
Grandes filmes de boxe ao longo da história se notabilizaram por mostrar o drama que envolve o lutador dentro e fora do ringue. Visto como um super-herói pela filosofia de um esporte que cultua a infalibilidade a todo custo, é fora da lona que o lutador revela sua fragilidade como ser humano. Diretores como Martin Scorese, em Touro Indomável, foram a fundo no retrato desse herói multifacetado. David O. Russell inscreve seu nome nesse panteão graças ao seu talento como diretor, e graças também a um roteiro que capta com realismo extremo dois aspectos contraditórios do cidadão americano: o dilema entre buscar a todo custo o pote de ouro no fim do arco íris do “american dream” e o apego sentimental às raízes familiares, que podem atrapalhar a realização do sonho. Inseridas num contexto onde o crack aparece como praga social devastadora e a “mocinha” do filme (a ótima Amy Adams) é uma jovem de formação universitária obrigada a se virar como bartender numa espelunca decadente, são questões como estas que fazem deste belo, tocante e complexo filme muito mais que uma luta pelo cinturão de campeão.
# O VENCEDOR (THE FIGHTER)
EUA, 2010
Direção: DAVID O. RUSSELL
Roteiro: SCOT SILVER, ERIC JOHNSON, PAUL TAMASY
Fotografia: HOYTE VAN HOYTEMA
Edição: PAMELA MARTIN
Música: MICHAEL BROOK
Elenco: MARK WHALBERG, CHRISTIAN BALE, MELISSA LEO, AMY ADAMS, MICKEY O´KEEFE
Duração: 115 min.