Não é prerrogativa do cinema poder ser falso ou virtuoso. Mas no cinema, falsificações e virtudes se ampliam. A malícia está no texto, na forma de narrar, nas interpretações. Por ser a combinação de muitos talentos, o cinema tem inúmeras chances de se tornar fraudulento. São fraudes que se contaminam mutuamente e que podem vir de direções bem opostas. As razões pelas quais filmes como O Vencedor e Tio Bonmee são estúpidos, por exemplo, não poderia ser mais diferente. E no entanto, esses filmes tão distintos tem algo em comum. Pode-se enxergar os podres de seus processos criativos. Eles são atirados ao espectador, seja lá em que patamar estejam. Somos testemunhas não apenas da ação, mas da maneira como ela se constrói. Essa construção é feita com o propósito de nos ludibriar, por razões igualmente torpes – seja para fazer dinheiro, seja para ganhar prêmios em festivais que passaram a se utilizar do desprezo ao cinema como uma forma de conquista.
É assim também o ser humano. Destacar as virtudes do ser desejado é o primeiro passo para perdê-lo. O desprezo – e não o reconhecimento – é a grande arma para a conquista. Admitir o belo deixa o admirador submisso ao objeto de sua admiração. A sedução é feita de truques. O cinema também.
O Discurso do Rei refere-se à declaração de guerra à Alemanha que o Rei da Inglaterra George VI foi forçado a fazer, logo após a sua coroação. Isso é um fato. O Rei lutava contra a gagueira, o que também é um fato. Há muitas possibilidades para se contar essa história e muitos truques a serem utilizados numa trama que envolve incertezas, problemas íntimos e, é claro, superação.
Muitos outros filmes desta safra, filmes com indicações ao Oscar em especial, falam de superação. O Vencedor, por exemplo, faz isso como se fosse um programa educativo da Disney. Cisne Negro apoia toda a sua trama numa única idéia: a busca pela perfeição.
E no entanto, se a perfeição flerta com algum filme, tanto na safra de que falamos como em muitas outras, esse filme é o que conta a história de um rei gago que, ao vivo, pelas ondas de radio da recém-criada BBC, tem que declarar guerra à Alemanha.
Não é possível falar sobre O Discurso do Rei sem se deter um minuto sobre a longa tradição dramatúrgica do teatro e particularmente do cinema inglês. Há um discreto componente metalinguístico aqui. O terapeuta do rei, Leonel Logue, não é um médico, mas um ator fracassado que tem dois interesses principais: os distúrbios da fala e Shakespeare. Seu tempo no lar é dedicado a representações de monólogos de Otelo e A Tempestade para seus filhos. No treinamento com seu ilustre paciente, o texto utilizado para forçar sua leitura é o mais famoso trecho de Hamlet. Logue é interpretado por Geoffrey Rush num tom que está a meio caminho entre Laurence Olivier e Rex Harrison e contém o que há de melhor nos dois. Por suas veias corre a anglofilia da qual o filme se alimenta e que explode na mais eloquente tradição da dramaturgia britânica.
Faz parte dessa tradição a celebração da arte de interpretar – e O Discurso do Rei leva isso ao paroxismo. Ver na tela um ator shakespeariano como Timothy Spall encarnando Winston Churchill é uma experiência emocionante. O mesmo se aplica, é claro, a Colin Firth, de Shakespeare Apaixonado e O Paciente Inglês, para não falar do melhor que existe em Wilde, de Dorian Gray a A Importância de ser Prudente. E a Derek Jacobi, Helena Bonham-Carter. E a cada um dos figurantes que pode ser encontrado no mais remoto canto de uma cena, o que historicamente constitui a mais impressionante tradição do cinema e do teatro inglês.
Quase toda a obra de Tom Hooper foi feita para a televisão. O que ele faz por O Discurso do Rei é o que pode ser mais grandioso na criação cinematográfica. Aqui estão uma direção de fotografia, um desenho de arte e uma trilha sonora absolutamente acima do melhor que se poderia esperar para qualquer filme. Hooper trata cada fotograma (diz-se frame atualmente, mas o de Hooper é fotograma) como se fosse o definitivo, como se nada mais pudesse existir após essa fração de segundo. O resultado é magnetizante. Nada é desnecessário, nada falta, nada está fora do lugar. A excelência da arte cinematográfica se manifesta através de filmes assim.
# O DISCURSO DO REI (THE KING´S SPEECH)
Reino Unido/Austrália, 2010
Direção: TOM HOOPER
Roteiro: DAVID SEIDLER
Produção: IAIN CANNING, EMILE SHERMAN, GARETH UNWIN
Trilha Sonora: ALEXANDRE DESPLAT
Fotografia: DANNY COHEN
Montagem: TARIQ ANWAR
Direção de Arte: NETTY CHAPMAN
Elenco: COLIN FIRTH, GEOFFREY RUSH, HELENA BONHAM CARTER
Duração: 118 minutos