Críticas


INCÊNDIOS

De: DENIS VILLENEUVE
Com: LUBNA AZABAL, MÉLISSA DÉSORMEAUX-POULIN, MAXIM GAUDETTE, RÉMY GIRARD
24.02.2011
Por Luiz Fernando Gallego
INVESTIGAÇÃO INDO ALÉM DE QUALQUER SUSPEITA

É pelo menos tão antiga quanto o Édipo-Rei de Sófocles a narrativa que assume o formato de uma investigação sobre o passado de alguém. O exemplo mais admirado no cinema ainda é o de Cidadão Kane, embora haja quem diga que tal recurso nem era inédito (Pauline Kael tentou atribuir – sem convencer - a originalidade deste tipo de gancho inicial ao roteiro de Preston Sturges para The Power and the Glory, um obscuro filme feito sete anos antes de Kane, em1933).



O fato é que as intrigas “policiais” ou “detetivescas” costumam manter a atenção do publico, tanto na literatura como nas telas, já que contêm segredos que apenas aos poucos vão sendo desvelados. E Incêndios, 4º longa-metragem de Dennis Villeneuve - que teve seu filme anterior, Polytechnique exibido no Festival do Rio 2009 - recorre ao mesmo artifício.



No entanto, o que dispara a procura de verdades ocultas sobre o passado de uma mulher de origem árabe, recentemente falecida, na abertura do filme (e do seu testamento no Canadá atual) já soa mais forçado do que insólito. Essa característica de algo inusitado demais é comentada pelo advogado que está lendo os últimos desejos desta mãe ao casal de filhos gêmeos - e soa quase como uma desculpa dos roteiristas pela justificativa criada no enredo para disparar a trama. Daí para frente, a presença empática da atriz Valérie Beaugrand-Champagne como a filha que atende aos desígnios maternos alimenta a curiosidade do espectador que tende a se identificar com esse padrão de personagem-guia, aqui em idas e vindas a cidades do Oriente Médio, entremeadas com flashbacks da história de sua mãe, ´Nawal Marwan´, vivida por Lubna Azabal. (Aliás, apesar desta atriz se mostrar também correta, fisicamente sofre alguma desvantagem para convencer quando precisa aparecer bem mais jovem ou bem mais velha).



O público precisa estar atento aos deslocamentos no espaço que também implicam em deslocamentos no tempo pretérito (o passado de ´Nawal´), mas nem tudo se encaixa muito bem. A tarefa da filha é a de encontrar o pai – que eles julgavam morto; e a do filho seria encontrar um irmão que eles desconheciam existir. Um conflito étnico-religioso fez a jovem Nawal perder o pai de um outro filho ainda em gestação, posteriormente doado para adoção (e de paradeiro desconhecido) por ser fruto de uma união “vergonhosa” devido aos preconceitos político-religiosos. Mas a filha que ela criou, esforçada na atual pesquisa sobre a mãe, em algum momento raciocina que o irmão até há pouco ignorado fosse de um outro parto. Nesta e em outra situação o espectador atento percebe coisas mais do que sugeridas antes dos personagens, em vez da descoberta em conjunto plateia-personagens, o que deixa as “revelações” finais entendidas pelos filhos como uma postergação desnecessária e de má dramaturgia. (Após um desses segredos ser revelado, há uma cena dos irmãos mergulhando em piscina de pretensão “climática” mas artificiosa)



Mais grave de tudo, entretanto, é o que vai sendo revelado na trama rocambolesca que começou como uma espécie de “Direito de Nascer” e vai evoluir como um imbroglio de coincidências e conseqüências trágicas, pleonasticamente explicitadas em uma fala mais para o final quando um personagem diz que “uma história não acaba nunca com uma morte; sempre ficam traços”.



Tudo tem conseqüências - e as guerras políticas e/ou religiosas podem ter forte parcela de interferência nos destinos individuais e – obviamente – coletivos. Mas o enredo pega pesado em possibilidades improváveis, muito dramáticas e inusitadas, transformadas em probabilidades pelo roteiro.



Reveladas as piores expectativas possíveis e coincidências inimagináveis, há uma espécie de “apaziguamento” nas cartas finais da falecida depois de expor – do modo mais complicado – a seus filhos o que foi sua vida novelesca.



O desempenho em clave discreta dos atores ajuda a não transformar o filme em um melodramalhão como o de novelas mexicanas (e brasileiras) mais descabeladas e datadas, mas isso não chega a ser um fator suficiente para redimir o filme. Lemos que no segundo filme do diretor, aqui lançado como Redemoinho (Maelström), de 2002, a história era narrada por um peixe, sugerindo o gosto do cineasta pelo insólito. Mas o insólito pelo insólito não é capaz de criar obras-primas com coincidências e conseqüências trágicas como em “Édipo-Rei” ou outras narrativas míticas.



ATENÇÃO: O epílogo deste texto não deve ser lido por quem ainda pretende ver o filme, pois revela os segredos do enredo



No final das contas, para os que se lembram de O Direito de Nascer, rádio-novela cubana dos anos 1940, de enorme sucesso no Brasil, inclusive quando levada para a TV já nos anos 1960, o enredo é como se ‘Albertinho Limonta’ (o filho dado para adoção na novela) tivesse transado com a ‘sóror Helena da Caridade’ (ex-Maria Helena de Juncal, sua mãe que, “desonrada” entrou para um convento) ignorando que era seu filho. Com agravante de tê-la estuprado como forma de tortura.



Essa mistura indigesta de um Édipo-tortutador-estuprador com dramalhão cubano ou mexicano redunda em um infeliz casal de gêmeos que corresponderiam a uma Antígona (sem Ismênia) e um Polinices (sem Eteócles), ao mesmo tempo filhos e irmãos do mais velho dos rebentos da mãe que perdeu um boa oportunidade de ficar calada antes de morrer. Depois de uma vida horrorosa, a infeliz, ainda que meio catatoniforme, preparou como herança para os filhos cartas ambíguas de duplo sentido (como se dizia das posturas "duplo-vínculo" por parte dos pais - e que seriam "esquizofrenizantes").



Há momentos isoladamente intensos (o episódio do ônibus) mesclados a platitudes inverossímeis (a dedicação do advogado zeloso pelo testamento da morta dentre outras facilitações para os filhos encontrarem as pessoas "certas" informando sobre o passado). O "perdão" materno e o take final do filho torturador-estuprador em frente à lápide da mãe são quase indecentes.



A desgraça familiar pode ser mesmo transgeracional. Na mitologia da Grécia antiga, isso era "maldição", mas por força da elaboração artística e carpintaria na encenação das fantasias ou riscos de lances como estes (incesto e suas consequências) podiam ser mais nobres em vez de escorregar no inusitado inconvicente .



# INCÊNDIOS (INCENDIES)

Canadá/França, 2010

Direção: DENIS VILLENEUVE

Roteiro: DENIS VILLENEUVE, VALÉRIE BEUAGRAND-CHAMPAGNE, WAJDI MOUAWAB, baseado em peça deste último;

Fotografia: SANDRÉ TURPIN

Edição: MONIQUE DARTONNE

Música: GRÉGOIRE HETZEL

Elenco: LUBNA AZABAL, MÉLISSA DÉSORMEAUX-POULIN, MAXIM GAUDETTE, RÉMY GIRARD, ABDELGHAFOUR ELAAZIZ.

Duração: 130 minutos

Sites oficiais: http://www.incendies-lefilm.com/ e http://www.sonyclassics.com/incendies/



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