A conhecida analogia entre filmes e sonhos como formas de realização de desejos (coletivos e individuais, respectivamente), sendo Hollywood conhecida como “fábrica de sonhos”, nunca deixou de incluir o equivalente a pesadelos nas telas: filmes com situações absurdas, ameaçadoras e angustiantes, geralmente com mais finais felizes nas décadas mais antigas. Mesmo com desfechos mais dramáticos, a plateia pode se deliciar com a desgraça alheia, ou seja, a dos personagens na tela – enquanto nossa vidinha rotineira segue sem maiores emoções mas, em compensação, sem nem tantos dissabores.
Fazem parte dos “pesadelos” cinematográficos muitos clássicos de Hitchcock, especialmente aqueles com o tema do “homem errado”, o sujeito comum que se vê acusado de algo que ele não cometeu, situação que toca sempre o nervo sensível da culpa ontológica na cultura judaico-cristã. A situação é de clima paranóide, com sensações persecutórias que podem ser exorcizadas através do que se passa no filme – e não com a gente.
Desconhecido pode ser inserido neste subgênero de “suspense paranóide”, partindo de uma situação absurda, segundo a qual alguém deixa de ser reconhecido por sua própria esposa e encontra outro homem com sua identidade. Claro que no desenvolvimento de tais premissas vai ser necessário que o espectador entre no jogo da “suspensão de descrença” e aceitação de algumas (ou várias) inverossimilhanças no encadeamento dos fatos, cada vez mais complicados. A “explicação” final da situação insólita será mais ou menos insatisfatória na maioria das vezes, mas afinal de contas, esses filmes seriam para ser vistos como “apenas filmes”. Claro que os filmes que Hitchcock fazia “apenas para divertir” são quase sempre títulos de destaque na história do cinema e mereceram estudos a partir de olhares os mais variados, com destaque para as leituras psicanalíticas. O onirismo presente na narrativa do grande diretor sobrevive às décadas enquanto tantas produções recentes que tentam seguir essa trilha afundam em clichês e cacoetes, quando não são apenas risíveis.
Para curtir Desconhecido é preciso relevar muita coisa do enredo rocambolesco, mas o próprio absurdo da premissa vai sendo assimilado pela direção e edição ágeis e que podem manter o interesse do espectador mais crítico, com ajuda dos cuidados de produção e do elenco. Liam Neeson serve bem à circunstância de “maior abandonado” com essa sua expressão habitual e o filme se permite o luxo de ter Bruno Ganz em uma pequena participação com as melhores frases do roteiro, ou seja, as de humor ambíguo e amargo sobre ter sido da ‘Stasi’, a polícia política da ex-Alemanha Oriental, muito mais “popular” desde A Vida dos Outros, do qual participava Seabastian Koch, aqui em papel menor ainda do que o de Bruno Ganz (e o de Frank Langella). Seria preferível um rosto menos bonito e menos conhecido do que o de Diane Kruger nas cenas iniciais como motorista de táxi (dá para acreditar na moça nesta função?); não que se vá exigir “realismo”: apenas para que a personagem ganhasse importância gradativamente e não ficarmos aguardando seu reaparecimento desde que ela some de cena logo no começo de tudo. A prsença de tantos atores alemães (inclusive nos papéis mais secundários ainda) se deve à locação que foi toda na Alemanha. Constrangedor é ver Aidan Quinn, que sugeria uma carreira mais significativa há vinte anos, em um papel pequeno e sem oportunidades, ainda que, como todos os personagens, seja essencial para a trama.
Não faltam as surradas e “obrigatórias” perseguições de carro – que são ótimas, cabendo destacar que funcionam muito bem os efeitos especiais e trucagens. A última ceninha poderia não existir, ficando como um dos pontos mais fracos do roteiro, sendo que os demais “furos”, ao longo da projeção, tendem a ser absorvidos pelo carrossel que é o filme.
#DESCONHECIDO (UNKNOWN)
Canadá, França, Japão, Reino Unido, EUA, Alemanha, 2010
Direção: JAUME COLLET-SERRA
Roteiro: OLIVER BUTCHER e STEPHEN CORNWELL, com base no liveo de Didier Van Cauwelaert
Fotografia: FLAVIO MARTINEZ LABIANO
Edição: TIM ALVERSON
Direção de Arte: STEPHEN DOBRIC, ANJA MÜLLER, CORNELIA OTT
Música: JOHN OTTMAN e ALEXANDER RUDD
Elenco: LIAM NEESON, DIANE KRUGER, AIDAN QUINN, JANUARY JONES, BRUNO GANZ, FRANK LANGELLA, SEBASTIAN KOCH
Duração: 103 minutos
Site oficial: http://unknownmovie.warnerbros.com/