Críticas


AMORES PARISIENSES

De: ALAIN RESNAIS
Com: PIERRE ARDITI, SABINE AZÉMA, JEAN-PIERRE BACRI, ANDRÉ DUSSOLLIER
07.02.2003
Por Carlos Alberto Mattos
CIRANDA, CIRANDINHA

O título brasileiro de On Connâit la Chanson sugere uma leve comédia de boulevard, repleta de cançonetas, baguetes e torres Eiffel. De certa forma, é isso mesmo. O humor transborda dos diálogos, as canções irrompem a todo momento da boca dos personagens, Paris está presente até no fundo das cenas interiores, e nem as baguetes deixam de ter seu momento de glória. Amores Parisienses é provavelmente o filme mais descontraído da carreira de Alain Resnais – e o melhor em muito tempo. Mas passa bem longe do boulevard.



Para começar, a comédia gira em torno de temas recorrentes no autor de O Ano Passado em Marienbad e Meu Tio da América: História, memória, acaso, suposições, enganos. A trama, irresumível, movimenta uma ciranda de personagens. A executiva Odile (Sabine Azéma) vive uma tripla crise – conjugal, de consciência e de moradia. Sua irmã Camille (Agnès Jaoui), guia turística acometida de síndrome do pânico, encanta-se por um agente imobiliário (Lambert Wilson) ao qual você não confiaria as chaves do seu apartamento. Um escritor de radionovelas (André Dussolier) e um homem de negócios (Jean-Pierre Bacri) também gravitam em torno delas. Nada de sério, mas muito de engraçado, acontece entre eles. O melhor: ninguém sabe de fato o que o outro é.



Assim como Odile acaba comprando um novo apartamento sem suspeitar que um prédio mastodôntico logo será construído à sua frente, roubando-lhe a bela vista da cidade, o espectador de Amores Parisienses deve estar preparado para um filme alheio aos cartões postais da comédia romântica. A peça principal da cenografia é uma horrenda escultura que se assemelha a uma pilha de pratos por lavar, erguida diante do novo prédio de Odile. A Paris que se deixa entreolhar ao longo do filme é impessoal e indiferente. E na seqüência da festa final, para onde convergem todas as pontas da história, Resnais se dá ao lixo de fundir a imagem dos atores com uma pavorosa água-viva em movimento.



Ora, bolas. Quem não embarcar na ironia com que tudo é tratado corre o risco de comprar gato por lebre. Ao mesmo tempo em que celebra o amor e a compaixão, Amores Parisienses zomba da seriedade que atribuímos a tantas coisas fúteis e da nossa imensa capacidade de nos fazer de trouxas. Por trás da divertida quadrilha de flertes e equívocos encontra-se gente deprimida, cínica e amarga. Apesar disso, o que prevalece no filme é a estranha sensação de presenciar doentes que cantam. Literalmente. Quando menos se espera (na verdade, esperamos o tempo todo), os atores passam da fala ao canto e de volta à fala, como se abrissem espaço para um pensamento ou mesmo complementassem um diálogo. O efeito é ora hilariante, ora simpaticamente ingênuo.



Resnais faz aqui uma homenagem explícita ao inglês Dennis Potter, autor de telesséries como The Singing Detective e Pennies from Heaven, em que as emoções dos personagens eram expostas através de canções. Mas Resnais nunca utiliza canções inteiras, senão pequenos trechos de 35 composições, que funcionam como aqueles flashes mentais que, em Marienbad, assumiam a forma de cenas completas. Todos fazem playback de gravações célebres do cancioneiro popular francês ou de hits pop mais recentes. Ninguém canta de verdade em cena – nem mesmo Jane Birkin, que faz uma ponta e mexe os lábios para sua própria gravação de Quoi?. O humor está nos deslocamentos de contexto, como o mictório de Duchamp no museu. Canções populares são entoadas por personagens intelectuais (ou pseudo). Homens cantam com voz de mulher e vice-versa. O sons de época se misturam e, por vezes, o contexto das letras destoa gostosamente da situação vivida. Imagine, por exemplo, um oficial da II Guerra solfejando seu amor a Paris com a voz fininha de Josephine Baker.



Resnais é um autor com curiosas particularidades. Pós-moderno avant la lettre, sempre teve uma queda para o hipertexto e a mistura de registros. Também soube se cercar de roteiristas de forte personalidade autoral, nos quais encontra fertilizantes para sua própria criação. A lista é fulgurante: Marguerite Duras (Hiroshima Mon Amour), Alain Robbe-Grillet (Marienbad), Jorge Semprun (A Guerra Acabou, Stavisky), Jean Cayrol (Muriel). Desde o díptico Smoking/No Smoking, entrou em cena o casal de roteiristas Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, que trouxeram novo sopro de humor para um diretor que parecia caminhar tanto para a estilização (A Vida É um Romance, Mélo) quanto para a esterilização (I Want to Go Home).



Agnès e Jean-Pierre interpretam, respectivamente, Camille e Nicolas em Amores Parisienses. Já os vimos juntos no excepcional O Gosto dos Outros, escrito pelos dois e dirigido por Agnès. Além de excelentes atores, eles são imbatíveis na criação de situações derrisórias, mas onde os personagens conseguem conservar intacta sua dimensão humana. Seus roteiros não primam pela narrativa suave e bem encadeada. Evoluem um pouco aos trancos, com saltos abruptos e algumas passagens mais esticadas que o necessário. Às vezes parecem complicados demais para o alcance que pretendem. Mas, como crônicas imperfeitas de uma sociedade fundada nas aparências, não há muita coisa melhor no cinema contemporâneo.





AMORES PARISIENSES (On Connâit la Chanson)

França, 1997

Direção: Alain Resnais

Roteiro: Jean-Pierre Bacri e Agnès Jaoui

Fotografia: Renato Berta

Montagem: Hervé de Luze

Música: Bruno Fontaine

Elenco: Pierre Arditi, Sabine Azéma, Jean-Pierre Bacri, André Dussollier, Agnès Jaoui, Lambert Wilson, Jane Birkin.

Duração: 120 min

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