Para não revelar informações exageradas (e nem as melhores piadas) de Meia-Noite em Paris, o mais recente filme de Woody Allen, fico no seu argumento básico e tomo a liberdade de abrir este texto recordando um breve sonho que tive aos vinte e poucos anos, ainda nos anos 1970. Na praia de Copacabana, eu me via entrando em um carro antigo, um carro americano dos anos 1950, ou mesmo de antes, mas que podia ser bastante visto na minha infância. O carro se punha em movimento e, além do deslocamento linear no espaço, a Copacabana que eu via pela janela ia se mostrando com aspecto de anos anteriores - e quanto mais o carro acelerava, mais íamos voltando no tempo. Quando eu percebia que estávamos em 1955 ou ’54, eu pedia para o carro parar, pois queria voltar para aquela época de minha vida; mas quando o carro reduzia a velocidade... voltávamos ao tempo presente. Quando eu saltava do carro estava de volta ao mesmo ano do qual (não) havia saído: o passado era visível, mas não tangível.
Já na década seguinte, um carro também servia para Marty McFly ir para um passado que nem vivera e depois tomar o rumo “de Volta para o Futuro” no filme do mesmo nome. Já se disse inúmeras vezes que os filmes podem ser sonhos compartilhados. O que alguns sonham, outros filmam.
Talvez com alguns anos a mais do que eu tinha quando sonhei com o “meu” carro-máquina do tempo, o personagem Gil (vivido por Owen Wilson com tiques de Woody Allen), em Paris, também embarca em um carro antigo (anos 1920) que o leva para aquela década naquela cidade. Sendo um roteirista bem-sucedido financeiramente em Hollywood, mas artisticamente insatisfeito, Gil sonha encontrar seus ídolos escritores, Hemingway e F. Scott Fitzgerald. E consegue “saltar” do carro providenciado pelo roteiro em plenos “anos loucos”.
Já se disse também que Meia-Noite em Paris é uma espécie de nova versão de Rosa Púrpura do Cairo: em vez de entrar em uma tela de cinema como a ‘Cecilia’ de Rosa Púrpura... para fugir de uma realidade frustrante, Gil entra em um carro que lhe proporciona um deslocamento no tempo, mantendo-se no espaço parisiense. Como em Rosa Púrpura..., o conflito que vai se estabelecer é entre o sonho e a realidade: desta vez, o sonho com uma “época de ouro” sempre anterior ao nosso próprio tempo. Fala-se em “época de ouro” – e não é de graça que, dentre tantos artistas que viveram Paris e sua efervescência cultural, Gil encontrará Salvador Dali (excelente composição de Adrien Brody) e Luís Buñuel - que juntos assinaram o famoso L’Âge d’Or em 1930.
Também como em A Rosa Púrpura..., Woody Allen devolve o espectador, delicadamente, à realidade ao fim desta fantasia cheia de referências culturais, mostrando que o cinema, tal como dizia Sigmund Freud sobre os sonhos, serve à realização de desejos. Para Freud, desejos infantis reprimidos. Para Allen, um passado tão idealizado quanto inatingível – como o do meu sonho. E adverte que nada terá o encantamento eficaz de substituir a vida real e o tempo presente. Até Cinderela sabia disso quando ia ao baile.
A sessão de cinema acaba, o filme (ou sonho) também, mas a vida talvez fique um pouco menos áspera depois dessa sessão-nostalgia onde, dentre tantas "citações", Kathy Bates brincou de ser Gertrud Stein e Marion Cotillard se mostra capaz de seduzir-nos para sonharmos indo mais longe ainda, no tempo . Quem disse que a nostalgia não é mais a mesma quando, por exemplo, escutamos Cole Porter em um filme de Woody Allen?
# MEIA NOITE EM PARIS (MIDNIGHT IN PARIS.)
EUA, Espanha, 2011
Direção e Roteiro: WOODY ALLEN
Fotografia: DARIUS KHONDJI, JOHANNE DEBAS
Edição: ALISA LEPSELTER
Direção de Arte: ANNE SEIBEL
Elenco: OWEN WILSON, RACHEL McADAMS, MARION COTILLARD, KATHY BATES, ADRIEN BRODY, MICHAEL SHEEN
Duração: 100 minutos
Site oficial: http://www.sonyclassics.com/midnightinparis