A discussão responsável sobre o papel da critica cinematográfica pode se dar a partir de três questões fundamentais: 1) o que é a crítica? 2) para que serve a crítica? e 3) como se exerce a crítica?
A grande imprensa se encarregou de confundir crítica com resenhismo - de induzir o leitor a acreditar que a crítica cinematográfica consiste na indicação subjetiva do filme que ele, o leitor, deve escolher para assistir no fim-de-semana. Para o leitor da grande imprensa, crítico é o resenhista que referenda essa escolha, adjetivamente, é claro, e de preferência com o acompanhamento de um ícone – um boneco, um conjunto de estrelas – muito mais percebido pelo leitor do que o próprio texto “crítico”. Se está referendado pelo ícone, o filme é digno de ser visto. Mais do que isso: é bom, mesmo que lhe pareça ruim – porque foi o bonequinho, foram as estrelinhas, que entendem do assunto, quem lhe garantiram isso. A ele, o leitor, o filme pode lhe parecer maçante, confuso, desinteressante, chato – mas o bonequinho, as estrelinhas, que entendem mais do que ele, lhe garantiu que é “cabeça”.
A responsabilidade do texto crítico passa por aí, mas isso é só o princípio. Textos críticos éticos e responsáveis não apenas contextualizam o filme, mas com frequência o antecedem e o superam. No Brasil, Antonio Moniz Vianna ensinou diversas gerações a tomarem o gosto pelo cinema, a partir da leitura de textos que falavam sobre filmes, mas iam além deles. Para ficar no estritamente palatável por grandes massas de leitores, textos como os de Roger Ebert são em geral bem melhores do que a maioria dos filmes de que eles tratam. Num e noutro caso, amor pelo cinema é pré-requisito para o discurso em que os críticos se engajam.
Textos levianos, no entanto, vêm disfarçados de muitas maneiras. Podem ser popularescos, desinformados, grosseiros, agressivos. Podem se referir a autores ou obras que os articulistas não conhecem, podem ser ingênuos, naïfs. Mas os danos não passam daí.
É quando se travestem de eruditos e definitivos que os textos críticos se tornam mais danosos. Ambos têm em comum o deslumbramento em ter nas mãos um instrumento capaz de julgar, de apontar verdades, debater o martelo. Mas o segundo grupo é bem pior, porque sua leviandade vem em geral acompanhada da arrogância.
Se aqueles são nefastos, estes são patéticos. Os primeiros levam os espectadores a consumirem obras de cinema, baseados em indicações imprecisas, incompletas, carregadas de subjetivismo e em geral alentados pela possibilidade de se criar um ambiente anedótico. São assumidamente levianos, mas inspiram compaixão. São os tiriricas da crítica.
O segundo grupo é malicioso, doloso, repulsivo. Fala unicamente com seus vizinhos, e é somente com eles que dialoga, e estabelece regras, conceitos e dogmas a respeito de algo que desconhecem. São comadres fuxiqueiras reivindicando uma erudição da qual estão longe. Criam pocilgas culturais infestadas de preconceitos e arbítrios. Respiram o azedume que produzem, até porque é só o que são capazes de produzir.
Do documentário Crítico, dirigido por Kleber Mendonça, pode-se dizer que convive melhor com a segunda categoria do que com a primeira. O diretor passou quase dez anos entrevistando críticos de cinema, muitos dos quais estranhamente não falam de filmes, mas de si mesmos, frequentemente se referindo ao desprazer que tem com o próprio ofício. Críticos cuja relação com o filme simplesmente não lhes é prazerosa. Alguns têm ali uma rara oportunidade de aparecer, de discorrer sobre o êxtase de ter uma pena na mão simplesmente para dizer como eles mesmos, não os filmes, podem ser interessantes. Muitos não acharão uma segunda pessoa que referende o que sentem por si próprios.
Os critérios que levam o diretor a escolher seus personagens são nebulosos. Mas o estarrecedor é que se faça um filme sobre críticos (seria melhor, mais barato de menos cansativo uma simples dissertação) sem que se leve em conta as questões essenciais: o que é, para o que serve e como se exerce.
Crítico fica longe de responder a qualquer das questões essenciais da crítica. Em compensação, destila um desprazer pelo cinema que beira o tragicômico. Sugere que o exercício da crítica passe necessariamente pelo mau humor quando se é colocado diante de um filme, qualquer que seja o filme, porque a melhor forma que se encontra para se expressar sobre o cinema não se assemelha a um pensamento, mas a um granido.
Deve ser triste viver e trabalhar cercado pelo que se odeia. Nelson Rodrigues falava dos padres de passeata, dos cineastas sem filmes. Se ainda vivesse, poderia falar dos críticos sem auto crítica.