Já se tornou lugar comum nos comentários internacionais publicados sobre O Garoto de Bicicleta, a mais recente realização dos cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne (Prêmio do Júri em Cannes 2011), a referência a Os Incompreendidos (Les 400 Coups, 1959), primeira grande obra de François Truffaut.
Embora a associação possa ser considerada (há alguma semelhança na situação básica do personagem central), para dialogar com este filme lembramos outra referência que nos parece mais pertinente - mesmo sendo outro lugar-comum nas análises envolvendo os irmãos Dardenne - que é um formato coerente com uma cosmovisão assemelhada (em parte) àquela que se encontrava nos grandes filmes de Robert Bresson (1901 -1999).
Ambos levantam de modo bem direto, e sobretudo, questões morais que são trazidas à baila com um distanciamento "cru", evitando climas melodramáticos para enredos que poderiam resultar em pieguice, mas que assumem uma apresentação quase “fria”. Também há uso freqüente de não-atores (ou de atores jovens ainda desconhecidos), mas acima de tudo, há uma proposta humanista de fato, sem a obviedade de filmes frequentemente apreciados por suas “mensagens” explícitas, sublinhadas, enfatizadas e tautológicas sobre a necessidade de nossa “humanidade” – no sentido adjetivo do termo - como valor positivo.
Na contra-mão deste caminho - que mais facilmente comoveria diferentes platéias ávidas de derramar suas lágrimas e se sentir em paz com sua consciência - os Dardenne lidam, não raro, com personagens pouco simpáticos, difíceis de conquistar nossa empatia, mas sem escamotear sua (nossa) humanidade (no sentido substantivo do termo) “demasiadamente humana”. Isso, sem cair no extremo oposto da exposição do tipo “exploração indignada” e “superior” das misérias humanas.
O que vemos em seus filmes é o lado menos solidário do cotidiano (nada de “grandes momentos dramáticos”) traduzido em enredos e narrativas imagéticas com extremo despojamento - que só surge deste modo por um certamente intenso trabalho de “esvaziamento” de qualquer ênfase com proporcional acentuação da sobriedade. Ou seja, muita confiança no que dizer e como dizê-lo.
Se abrimos este texto com um certo questionamento à associação de Le gamin au veló (título original) ao filme inaugural de Truffaut é porque o personagem do garoto Cyrill jamais assume o tom doceamargo de outro garoto mal cuidado, o Antoine Doinel vivido pelo mesmo ator Jean-Pierre Léaud em mais 4 sequências de Os Incompreendidos.
O humor truffautiano, e muito menos a “doçura” (mesmo que aparente), quase não se faz presente nos filmes dos Dardenne; e a ternura - ainda que muitas vezes enganosa (mais manifesta do que latente) frequentemente identificada de modo mais apressado na obra de Truffaut-, assume aqui uma visibilidade turva, nas entrelinhas (ou entrecenas), subjacente à secura da narrativa visual e da trilha sonora diegética, sem “música de fundo”. A exceção deste recurso (que satura tantos filmes com abusos musicais pleonásticos) surgiu economicamente nos segundos finais da obra-prima da dupla, o anterior, excepcional e pouquíssimo visto por aqui, O Silêncio de Lorna, quando deixaram emergir, bem no finalzinho, o trecho inicial da Arietta da ultima sonata para piano de Beethoven.
No novo filme, eles voltam a outra obra magna de Beethoven, o concerto para piano conhecido como “Imperador” que reaparece breve e surpreendentemente umas três vezes das muitas em que Cyrill dispara na sua bicicleta. Curiosamente, o trecho que escutamos fica limitado à introdução orquestral do movimento lento do concerto, o que o deixa menos “romântico” e com uma aparência praticamente “bachiana”, sem que se escute quase o piano entrando em cena.
Desta vez, os diretores também não evitaram lágrimas – para dois personagens – e nem abriram mão de uma atriz famosa como Cécile De France no papel de ‘Samantha’, além de recorrerem a dois outros intérpretes que funcionam quase como “assinatura” de seus filmes: Olivier Gourmet (mesmo que em figuração cameo de menos de um minuto) e Jérémie Renier (que também esteve no belo Horas de Verão, de Assayas – DVD lançado pela livraria Cultura -, e no recente e bobíssimo Potiche – esposa troféu). Aqui, Jérémie faz o papel do pai que não quer mais saber do filho deixado em um internato.
A crueldade dos fatos que cercam Cyrill em sua obstinada tentativa de resgatar o pai para si e as adversidades que se seguem em insidioso crescendo podem até lembrar Mouchette, um dos mais bem-sucedidos momentos da carreira de Bresson, ainda que – como já foi dito – nos Dardenne as situações cotidianas sejam bem mais des-dramatizadas ainda. E não carreguem a sombra jansenista do romance original de Bernanos cuja visão Bresson preservava.
Mas não se intimidem os que conhecem o pessimismo trágico de Mouchette: a ligação mais forte de O Garoto de Bicicleta com Bresson, neste caso, é na estrutura de enredo que faz lembrar outro filme “sem saída” de Bresson, O Dinheiro (1983). Tal como no conto de Tolstoi que deu margem ao derradeiro filme de Bresson, um fato dá origem a outro que por sua vez acarreta outra(s) consequência(s) - e cada vez piores. Se em Tolstói/Bresson há um gancho ficcional mais dramatizado (passar adiante intencionalmente uma nota falsa), no filme em pauta temos a circunstância prosaica de um pai que não pode ou não quer se empenhar em cuidar do filho (não há menção à mãe, apenas a uma avó que teria morrido recentemente) e que se muda sem deixar pistas, abandonando o filho em um internato.
Se os pais de “João e Maria” os deixam em uma floresta, também há um bosque nas imediações da cidade onde se passa a história embutindo uma gangue de jovens e situações sociais de risco para Cyrill (pode-se até lembrar dos que tiram ‘Pinóquio’ do “bom caminho”) . Mas diferentemente das situações cada vez mais trágicas de O Dinheiro ou de Mouchette, o acaso e a obstinação selvagem - e física - do menino também lhe trazem o acaso de encontrar ‘Samantha’ que é o único “acidente” favorável na vida recente do rapazinho de onze anos. E a lembrança de enredos de contos de fadas não foi gratuita: encontramos posteriormente uma declaração de que os Dardenne até pensaram em chamar o filme de “Um conto de nossos tempos”.
Sobre a personagem vivida de modo igualmente “direto” por Cécile De France (que é belga como eles), os roteiristas-diretores disseram não querer mesmo que o espectador soubesse o porquê dela se interessar por Cyrill, evitando qualquer “explicação psicológica”. E também não queriam estabelecer relações de causalidade entre o passado e o presente: o filme teria nascido da imagem sem circunlóquios de uma mulher que tenta ajudar um garoto que é “uma pilha de nervos” (sic) e que deixasse no público apenas a impressão de que “ela faz isso” - e essa colocação de um fazer já fosse muito para ser ofertado à plateia.
Primeira realização que os cineastas filmaram em pleno verão (belga), pode deixar nas nossas retinas cansadas de obviedades a imagem do muito jovem ator (14 anos nas filmagens), o estreante Thomas Doret (tão expert na sua bike como na interpretação de enorme força “muscular”) como o menino cujos laços foram cortados, sem vínculos que o amarrem, pedalando incessantemente, para lá e para cá, em movimentação caótica.
Sob aparência naturalista - e considero um equívoco simplificador tomar o estilo da dupla como apenas “naturalista” - a linguagem visual (e a visão de mundo) é sofisticada ao extremo para se mostrar “realista”, mas de um realismo que serve, mais uma vez, ao questionamento agudo de aspectos menos felizes das circunstâncias humanas.
E se este novo lançamento não chega às culminâncias de O Silêncio de Lorna, pode vir a ser mais bem sucedido na possibilidade de se comunicar com um público mais amplo do que Rosetta, O Filho ou A Criança, todos sobre ligações partidas entre pais e filhos, mas desta vez com uma possibilidade de esperança, ainda que totalmente em aberto. Como nas grandes obras verdadeiramente realistas, sem ganchos (fracos ou mesmo brilhantes) de roteirização. Com lugar para o acaso que faz Cyrill “trombar” (e derrubar no chão) ‘Samantha’ em seu primeiro encontro/desencontro por mera coincidência e acaso...