Nos anos 1970, Fausto Wolff, então crítico de televisão do Jornal do Brasil (sim, a imprensa brasileira já teve críticos de televisão do nível de Fausto Wolff, e para quem isso não quer dizer muita coisa, um Google é bastante recomendável), Fausto Wolff, dizia eu, sustentava uma tese sobre a forma como educamos nossas crianças. Segundo ele, um adulto faz caretas e bilu-bilu para o recém-nascido. Nada pode ser mais ridículo. O que pensa então a criança? “Coitado desse cara, é um retardado mental. Vou imitá-lo para ele não se entristecer”. O bebê retorna então as caretas e o bilu-bilu. E assim começa o seu próprio processo de idiotização. Torna-se ele próprio um débil-mental e vai transferir isso mais tarde a todas as crianças que passarem por seu caminho.
Acho que Wolff dizia isso em referência à programação infantil das televisões, que já naquela época era muito ruim e só fez piorar nos anos que se seguiram. A programação infantil das televisões tem uma enorme parcela de responsabilidade pela imbecilização dos adultos, e o mesmo acontece com o cinema. Filmes para crianças são, com raras exceções, verdadeiras usinas de retardados mentais.
Pode parecer contraditório que eles se tornem melhores justamente na medida em que desconsiderem a própria criança e voltem-se para uma audiência mais esclarecida, ou pelo menos com maior repertório. Isso soa estranho, mas o que acontece nesse caso é a demonstração de respeito pela capacidade do ser humano, não importa a sua idade, de pensar. Quero dizer que a percepção do que é bom antecede o seu pleno entendimento. Quem nunca se encantou com uma obra – seja um filme, um romance, um quadro, uma poesia – que não tenha entendido plenamente? Quem nunca foi entender lá na frente, em revisões bem posteriores, situações que seus repertórios, antes, não permitiam decifrar?
É bastante defensável, por exemplo, a tese de que muitos dos filmes clássicos da Disney deveriam ser vedados às crianças. Matar uma menina e arrancar seu coração? Assassinar a mãe na frente da própria filha? Filmes como Branca de Neve e os Sete Anões ou Bambi requerem uma maturidade emocional que evidentemente só vem com o tempo. Mas são extraordinariamente bem realizados - e é melhor uma criança com pesadelos e informação qualificada, do que bem dormida e mentalmente atrofiada.
Quando o primeiro Happy Feet foi lançado, em 2007, ali estava uma parábola sobre a intolerância, mais poderosa do que mil passeatas. A razão para isso repousava na forma tanto quanto no conteúdo; a história do pingüim diferente dos outros não era contada por bilu-bilus, mas construída como um musical com referências adequadas a pessoas mais velhas que o chamado “público-alvo”, uma das inúmeras invenções pouco inteligentes de uma ciência (?) conhecida como marketing, cuja matéria-prima é justamente a escassez de inteligência.
Happy Feet, que contava uma fábula adequada para as crianças – e tremendamente instrutiva para elas – era desse modo um filme formalmente construído para adultos. Não por acaso, quem o fazia era o australiano George Miller, que 18 anos antes havia dado, com Mad Max, uma contribuição singular ao cinema de ação e de prospecção científica. Mad Max antecipava em três anos uma obra de transição como Blade Runner e possivelmente inspirava o filme de Ridley Scott, pelo menos no vetor do niilismo dark que a partir daí se tornaria uma escola.
Bons filmes foram e continuam sendo feitos a partir de premissas semelhantes, mas poucos – acrescidos de The Warriors – os Selvagens da Noite, de Walter Hill, feito praticamente ao mesmo tempo em que Mad Max - terão o mesmo impacto e a mesma consistência. Miller participava de um movimento, ao lado de diretores como Peter Weir – naquela época fazendo seguidas obras-primas, como Picnic na Montanha Misteriosa e The Last Wave – que colocava o cinema australiano na linha de frente da criação cinematográfica internacional.
Weir e Miller faziam (e continuam fazendo) um cinema visceral – uma palavra desgastada mas insubstituível – na contra-mão do torpor que se instalava em tantas cinematografias tradicionais. Seria curioso comparar o que acontecia naquele momento na Austrália, com o que se dava na França, na Itália ou no Canadá, por exemplo. Sim, Mad Max era isso: visceral, revolucionário e verdadeiro. Esses atributos permaneciam pelo menos no primeiro retorno de Mad Max e, em larga escala, no filme que suponho ser sua primeira experiência infantil como diretor, Babe, o porquinho atrapalhado na cidade, de 1998 – continuação do primeiro filme (Babe, o Porquinho Atrapalhado) que Miller havia escrito e o também australiano Christopher Noonan havia dirigido três anos antes. Também uma fábula, também ousada ao lidar com o tema do tratamento dado pelos humanos aos animais, e, principalmente, também sem os bilu-bilus que normalmente acompanham essas histórias, Babe acenava para a construção de um cinema que se fundamentasse na idéia de que crianças não são necessariamente descerebradas.
A continuação de Happy Feet investe sobre essa premissa e de certa forma a radicaliza. Happy Feet 2 não é apenas um filme sofisticado do roteiro à realização. Ele é um evento, cuja existência – ou pelo menos a experiência em sua plenitude - não pode prescindir de muitos recursos recentemente incorporados ao cinema.
Está certo que o IMAX não é algo exatamente novo, mas a sua generalização o é (a primeira, e por enquanto única sala IMAX no Rio de Janeiro, foi inaugurada apenas em 22 de julho deste ano). Happy Feet 2 é concebido para a imersão do espectador e é impossível absorvê-lo plenamente de outra maneira. (Deve-se abrir aqui um pequeno parêntese para alertar os exibidores sobre tradicionais erros de avaliação na programação de filmes “infantis”; no Rio, Happy Feet 2 só é exibido na versão original às 10 da noite. Os Muppets nem isso; chegam apenas em versões dubladas em todos os cinemas, todas as sessões. Se fossem voltados apenas para crianças, não estariam na televisão aberta norte-americana às 8 e meia da noite).
De qualquer forma, o fato de se constituir num musical tradicional, capaz de lidar com referências operísticas do século 19 como se estivesse falando de Lady Gaga, torna-se até secundário em Happy Feet 2 se levarmos em conta que o espectador é de fato lançado num ritual cinematográfico de notável contemporaneidade.
Refiro-me certamente à experiência tecnológica, mas também narrativa. Happy Feet 2 está anos à frente das boas animações (não quero perder tempo com as ruins) teoricamente concebidas para o mesmo público, como Rio e seus assemelhados. É uma homenagem tanto ao espetáculo cinematográfico quanto ao discernimento do espectador, tenha ele 8 ou 80 anos. Iguala crianças a seres humanos, o que para tantos contadores de histórias pode parecer uma heresia intolerável.