Críticas


HORAS, AS

De: STEPHEN DALDRY
Com: NICOLE KIDMAN, JULIANE MOORE, MERYL STREEP, ED HARRIS
28.02.2003
Por Susana Schild
ADAPTAÇÃO INTELIGENTE E DE QUALIDADE

Reza a tradição que adaptações literárias para o cinema costumam ser, como o conceito indica, mais literárias do que visuais. Nesse sentido, deve-se reconhecer que transpor As Horas para a tela representou um risco dobrado. Explica-se: o filme se baseia em As Horas, de Michael Cunningham, prêmio Pullitzer de 1998, que por sua vez tem como inspiração um dos livros mais célebres da língua inglesa, Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, uma das criadoras da literatura moderna através de "fluxos de consciência" - textos introspectivos, subjetivos e, no caso, reveladores da sensibilidade feminina.



No filme, a escritora, em uma de suas últimas falas diz que "se deve encarar a vida de frente". Se mudarmos a palavra vida por desafio, teremos a postura adotada pelo diretor Stephen Daldry (Billy Elliott) e pelo roteirista David Hare: encararam de frente a gênese literária do projeto e a transformaram na própria essência do filme em que livros são escritos, lidos, comentados, referenciados e, sobretudo, "vividos´.



As Horas segue três mulheres em épocas e contextos bem diferentes ao longo de 24 horas. Virginia Woolf (Nicole Kidman) escreve Mrs. Dalloway em 1923 nos arredores de Londres e se revela incapaz de conciliar o mundo das idéias com as exigências do cotidiano. Laura Brown (Julianne Moore), casada, com um filho pequeno e grávida, mora em Los Angeles em 1951 e através da leitura de Mrs. Dalloway consegue evadir-se da asfixiante vida doméstica. Já no século XXI, em Nova York, Clarissa Vaughan (Meryl Streep), editora bem sucedida , começa o dia comprando flores para uma festa em homenagem ao ex-namorado Richard (Ed Harris), também escritor, em estágio terminal da Aids, e que a chama de Mrs. Dalloway. Afinal, Clarissa Dalloway é o nome da personagem do livro de Virginia Woolf, que começa sua jornada de 24 horas, prosaicamente, com a frase: “Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores”.



Virginia, como define sua irmã Vanessa (Miranda Richardson) vive duas vidas - a sua e a de seus personagens. Apesar de mostras de desequilíbrio, Virginia conta com o apoio do marido Leonard (Stephen Dillane) e de médicos - e recusa ambos. Ela deixa sua posição bem clara em um doloroso embate conjugal em uma estação de trem. Virginia quer conduzir sua vida como bem entender - e decide terminá-la em 1941 enchendo o bolso de pedras e afogando-se em um rio com a mesma elegância e dignidade de seus textos, como mostra o prólogo do filme.



Na ensolarada California, Laura Brown recusa a vida de dona de casa, esposa e mãe ao lado de um veterano da Segunda Guerra Mundial (John C. Reilly, ótimo). Em seu lar, uma sufocante sensação de estranheza. Para ela, fazer um bolo é um desafio hercúleo. Uma vizinha sorridente Kitty (Toni Collette) logo deixa cair a máscara, provocando um gesto de genuína ternura de Laura. Apesar do carinho mecânico que devota ao filho pequeno, momentos de paz parecem vir somente da leitura de Mrs. Dalloway. A farsa do cotidiano feliz desmorona no fim da noite em diálogo de lancinante banalidade, enquanto o marido a espera na cama e Laura chora copiosamente no banheiro.



Das três mulheres, Clarissa aparenta ser a mais resolvida. Na América do século XXI, tabus sofridos por Virginia e Laura - sobretudo ligados à sexualidade - parecem coisa do passado. Editora bem-sucedida, homossexual e mãe solteira assumida, assume uma vida paralela ao cuidar, diariamente, de seu ex-namorado, também homossexual Richard (Ed Erris). Clarissa, de forma vaga, sofre por um sentimento de nostalgia de um momento perfeito de felicidade vivido na juventude.



Se no livro de Cunningham os capítulos alternam os nomes das personagens em uma ciranda que somente ao final encerrará seu círculo, na tela o vínculo entre Virginia, Laura e Clarissa, graças à inspirada montagem paralela, ganha em simultaneidade e continuidade.

O entrosamento entre elas acompanha pequenos gestos do cotidiano - pentear os cabelos, arrumar flores em jarros, jogar comida no lixo, ler, escrever, conviver com maridos/mulher (no caso de Clarissa) e visitas. Ao final, uma revelação surpreendente quanto às conseqüências de escolhas - ou falta delas dá o laço final na trama. Ao fundo, a trilha sonora de Phillip Glass reforça a atmosfera repetitiva e hipnótica do universo das personagens.



Stephen Daldry, mais maduro neste segundo longa, envolve com delicadeza e elegância suas personagens em uma mesma teia de vulnerabilidade diante do cotidiano, no qual emoções fogem ao controle e questionamentos geram mais angústias do que respostas. E realiza uma bela homenagem ao poder da literatura, defendida por três atuações irrepreensíveis: Nicole Kidman, com o famoso nariz postiço e um adequado olhar enviesado, interioriza com brio a paradoxal e conflituada Virginia Woolf. Julianne Moore, mesmo com expressão catatônica, brilha como a deprimida Laura Brown, e Meryl Streep cuida, com eficiência, da agitada Clarrissa. Como deslize a concepção over de Ed Harris.



Os leitores dos livros inspiradores certamente terão um prazer extra diante da qualidade e inteligência da adaptação que, em época de corrida ao Oscar, está no páreo por nove estatuetas, incluindo filme e direção. Ainda: os que quiserem continuar no clima, podem procurar o vídeo Senhora Dalloway (Mrs. Dalloway) , que traz interpretação impecável de Vanessa Redgrave em filme mediano dirigido por Marleen Gorris em 1997.



# AS HORAS (THE HOURS)

EUA, 2002

Direção: STEPHEN DALDRY

Roteiro: DAVID HARE

Produção: SCOTT RUDIN E ROBERT FOX

Fotografia: SEAMUS McGARVEY

Montagem: PETER BOYLE

Música: PHILIP GLASS

Elenco: NICOLE KIDMAN, JULIANE MOORE, MERYL STREEP, ED HARRIS, TONI COLLETTE, CLAIRE DANES, JEFF DANIELS, JOHN C. REILLY, MIRANDA RICHARDSON

Duração: 116 min.

site: www.thehoursmovie.com



LEIA A CRÍTICA DE CARLOS ALBERTO MATTOS

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