Texto revisto a partir do publicado anteriormente por ocasião do Festival do Rio 2011
Um Método Perigoso está para a carreira de David Cronenberg assim como Uma História Real está para a carreira de David Lynch: infelizmente sem atingir o mesmo patamar de “obra à parte” que o filme de Lynch atingiu em relação ao seu “estilo” habitual.
Se Cronenberg trabalha com o mesmo fotógrafo, o mesmo músico, o mesmo montador – e até o mesmo ator Viggo Mortensen de seus filmes anteriores (Senhores do Crime, 2007, e Marcas da Violência, 2005), poderíamos esperar que ele fosse, de alguma forma, fiel a si mesmo, ainda que em outro diapasão: caso conseguisse substituir a violência corporal que transborda exacerbadamente de praticamente todos os seus filmes pela violência psíquica do inusitado triângulo que se estabeleceu entre Freud, Jung e Sabine Spielrein. Freud foi, durante algum tempo, mestre de Jung, e, mais tarde, de Sabine; e Jung foi terapeuta dela, de certa forma seu “segundo mestre” (ou primeiro, cronologicamente) mas também seu amante, transgredindo os limites e a ética da relação terapeuta-paciente.
Mas, ao que parece, Cronenberg ficou excessivamente submisso ao roteiro extraído da peça teatral The Talking Cure, de Christopher Hampton, encenada com Ralph Fiennes no papel de Jung em 2003 - e que foi criticada como sendo uma coleção de “fatos mais indexados do que dramatizados; um texto que narra mais do que penetra nos eventos que mostra” - no dizer de John Lahr para The New Yorker. Se isto já teria sido uma questão em um espetáculo de duas horas e meia no palco, imaginemos a intensificação destes aspectos condensados em um filme de uma hora e quarenta (incluindo os minutos dos créditos).
O roteiro cinematográfico também se baseia em um livro que emprestou ao filme a ideia de seu título (A Most Dangerous Method, de John Kerr) mas é assinado pelo próprio Hampton, autor da peça mencionada, famoso pelos roteiros de Ligações Perigosas, 1988 (também baseado em uma peça de sua autoria extraída do romance de Laclos); Carrington, que Hampton dirigiu em ´95; O Segredo de Mary Reilly,´96; O Americano Tranqüilo, 2002 e Desejo e Reparação, 2007.
O filme parece mais de autoria de Hampton do que de Cronenberg – que, entretanto, conseguiu algo mais autoral em outro filme seu baseado em peça alheia: M. Butterfly, de 1993, com Jeremy Irons - onde a violência psíquica era mais presente do que a física (que também existia).
Uma característica do cineasta sempre foi a corporeidade de suas imagens, mas aqui - exceto: a) pelas crises de histeria de Sabine, (bem) interpretadas por Keira Knightley (quem acha que a atriz exagera nunca presenciou uma crise de "grande histeria"); ou b) por seu masoquismo sexual (mostrado quase assepticamente) - o corpo parece elíptico, restringindo-se a algo falado - como na “talking cure” (“terapia pela palavra”) do título original da peça, um dos epítetos para a psicanálise freudiana.
E como se fala neste filme! A sensação de “teatro filmado” surge mesmo em quem não soubesse sua origem teatral (como foi o caso deste resenhista). E algumas vezes os diálogos (ou monólogos) atingem um tom solene de postulação teórica (psicanalítica, filosófica, etc).
É verdade que do ponto de vista histórico e psicanalítico, os tais fatos indexados no filme (assim como na peça, tal como se lê na crítica de The New Yorker citada) são quase todos bastante rigorosos em relação à história da psicanálise e às teorias seminais de Freud. O encantamento inicialmente mútuo entre Freud e Jung e a ruptura posterior, após poucos anos, é de conhecimento público bem amplo; mas um dos possíveis motivos (dentre muitos outros) para o afastamento entre eles dois só ficou mais divulgado depois de 1980, quando Aldo Carotenutto, um junguiano, publicou a correspondência (que está accessível) entre Sabine, Jung e Freud no livro aqui traduzido como Diário de uma Secreta Simetria – Sabine Spielrein entre Jung e Freud. Muito do que se escuta no filme é transcrição direta de trechos das cartas entre estes três pesquisadores da psicologia humana.
Neste sentido, Um Método Perigoso fica algo reduzido a um correto filme de divulgação, realizado com apuro artesanal e ótimos desempenhos do trio de atores: o texto para Jung tem melhores oportunidades e modulações - muito bem aproveitadas pelo cada vez mais interessante ator Michael Fassbender (que também está em cartaz em Shame), sem menosprezar o Freud de Viggo Mortensen.
Ser autoral não é necessariamente uma qualidade em si mesma, e nem Lynch nem Cronenberg como "autores" pertencem ao panteão deste crítico, mas era de se supor que o interesse de Cronenberg nesta história real pudesse se traduzir em algo mais pessoal que redundasse em uma narrativa própria com seus episódios de violências psicológicas - incluindo especialmente o abuso de uma analisanda por parte de seu analista despreparado para lidar com manifestações de investimento amoroso das pacientes que, há muito já se sabe, são transferências.
Elisabeth Roudinesco formulou, com bom humor e sabedoria, que se Freud transasse com as pacientes histéricas que demandavam relacionamento erotizado com ele, não teria podido descobrir a tal “transferência” – que pode ocorrer também por parte do psicanalista que se deixa levar pela ilusão transferencial. Pode ser curioso observar a dificuldade de Jung para com a ênfase de Freud na libido, sendo que Jung não pôde – mais de uma vez – deixar de ser “libidinoso” com pacientes.
Mas até que ponto isso interessa ao público não-psi? Pode ser que a curiosidade pelas figuras históricas e pela transgressão em uma relação terapêutica possam motivar as platéias. E para o público “psi” o filme fica com um aspecto “chapa branca” sem nenhum acréscimo ao que esta tribo já sabe/conhece. Como apontou o crítico teatral, há informação factual, mas não uma dramaturgia criativa, nem um olhar novo (muito menos “cinematográfico”) sobre os fatos.
E se Jung fica mal na foto, os letreiros finais o colocam como “o” (ou “um”) grande psicólogo do século XX - sobre o que há discordâncias já expostas no filme por sua evidente tendência ao misticismo e ocultismo, em contraposição à tentativa mais rigorosa (cientificizante) de Freud e dos que desenvolveram suas idéias em formulações de fato “psicanalíticas” – terreno do qual Jung e sua “psicologia analítica” se afastou. Mas isso já seria outra história para outro filme, melhor como documentário, ainda que cheio de lances pessoais conflitivos, como os de Jung e Freud.
Luiz Fernando Gallego é psicanalista, filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise do RJ e à Associação Psicanalítica Internacional, além de membro da Associação de Críticos de Cinema do RJ