Se o título internacional de Amor e Dor remete com mais crueza ainda a uma idéia de algo masoquista (Love and Bruises pode ser traduzido como “amor e equimoses”), essa possível “explicação” psicológica sobre o comportamento dos personagens centrais do filme parece-nos demasiadamente “fácil”.
É tentador apelar para o conceito de perversão como núcleo do vínculo entre a estudante chinesa em Paris, ‘Hue’, e seu namorado operário, ‘Mathieu’. Afinal, a primeira transa deles é quase um estupro inicialmente semi-tolerado pela moça nas preliminares. E ficará ainda mais difícil, para quem acompanha o desenvolvimento da relação entre eles, aceitar que ela mantenha o namoro depois do episódio que envolve um amigo de Mathieu, um sujeito ainda mais “casca-grossa”, ‘Giovanni’. Como uma estudante universitária que pertence a uma classe considerada “intelectual” pode ser tão pouco esperta frente a riscos que o filme sugere antecipadamente para quem o assiste?
Sobre essa questão cabe lembrar que a “coerência” psicológica de bom-senso ou senso comum não rende grandes enredos ficcionais em grandes filmes e romances que versam sobre paixões amorosas. E mais frequentemente ainda, evitamos conhecer que paixões ensandecidas e “ilógicas” ocorrem fora das telas e dos livros com intensidade igual ou maior à dos grandes desatinos que a ficção nos permite compartilhar - sem que nos descosturemos nas “traças da paixão” de que falava uma bela letra de música do falecido poeta Cacaso.
Um dos possíveis olhares sobre este filme depende de que possamos abrir mão de tentar compreender o que se vê no sentido de imaginar o que nós faríamos se estivéssemos no lugar dos personagens. A tendência do espectador é sempre a de colocar-se nas situações iniciais do enredo – quando talvez muitos de nós não fizéssemos o que Hue e Mathieu fazem. Talvez (talvez...) não fizéssemos as mesmas coisas... Mas independentemente do que faríamos ou não, a maior dificuldade é a de empatizar (compreender o que nos é estranho) em vez de querer identificar os personagens conosco. Sentindo esta impossibilidade de identificação, é fácil tachá-los de “masoquistas” des-identificados de nossa auto-imagem.
Mas se atentarmos para o modo intensamente adesivo como se passa a relação de Hue com Mathieu (e vice-versa), talvez possamos percebê-los como nossos semelhantes ainda que nem sempre idênticos a como nos vemos; e assim poderemos usufruir de mais uma oportunidade que a arte nos oferece: compartilhar uma paixão (qualquer, sensu lato) sem sofrer as conseqüências de um verdadeiro “amour fou”, ainda que tantos anos depois dos surrealistas defenderem essa insensatez amorosa.
Em um primeiro momento nos recordamos de um grande número de filmes que mostram homens ensandecidos pela sedução que uma mulher despertava neles: desde O Anjo Azul, quando o Professor Umrat engatinhava por Lola-Lola na pele de uma ainda roliça Marlene Dietrich, até o amante que se deixava sufocar até morte durante o ato sexual em Império dos Sentidos, passando pelo homem transformado em “fantoche” do romance de Pierre Louÿs La Femme et le Pantin tantas vezes levado às telas, incluindo a versão genial de Buñuel (Esse Obscuro Objeto do Desejo). Aqui, entretanto, a primeira impressão é que a mulher é que caiu nas tramas de uma paixão obcecada, sendo que seu parceiro também se vê como incapaz de continuar a viver se o caso deles acabar. Caso a atração entre eles passe por algum prazer com o sofrimento (físico e mental), o que mais sustenta a relação é a premissa de que “eu sem você não tenho porquê...”.
A proposta de olhar o filme pelo viés de um relacionamento adesivo do qual não se consegue sair, como se fosse de uma dependência química, pode ser levantada a partir de uma breve cena antes dos créditos iniciais quando Hue pede a um ex-namorado que ele não termine a relação. Não adianta ela implorar, o homem se vai. Pouco depois, ela será atingida (concretamente) na cabeça por Mathieu que carrega ferragens para montar e desmontar feiras. Inicialmente preocupado com a possibilidade de tê-la machucado seriamente, logo ele entra em óbvia atitude de paquera, convida-a para jantar, e quando ela diz que vai embora, ele se mostra irritado: como aceitou um convite para jantar e agora evita um contacto físico mais íntimo? Esse é Mathieu, interpretado visceralmente por Tahar Rahim (de O Profeta, pelo qual ganhou o César de melhor ator em 2009, dentre outros prêmios – e mereceria outros tantos por este filme).
Na saída da sessão para críticos de cinema, comentei com Alberto Shatovsky a proposta de entender os personagens pelo ângulo do relacionamento adesivo, mais do que pelo ângulo “masoquista” - e ele levantou a hipótese de que Hue instiga nos homens com quem se envolve a adesividade – que seria uma inclinação original nela mesma: adicta, tendo o parceiro adicto a ela. Se o homem do prólogo a abandonou (e jamais saberemos detalhes de como foi a relação entre eles), ela, através de um acaso, vai propiciar que Mathieu se relacione com ela desse modo “adesivo”, que seria o modo dela estabelecer as ligações de suas valências intoleravelmente livres.
Mais rude, mais tosco, mais simplório, o proletário Mathieu vai ser um “ator” ideal para desempenhar esse “papel” que parece se repetir nos homens com quem Hue se envolve: ela deixou um homem apaixonado por ela na China, assim como vemos que ela residia com um conterrâneo em Paris. Aliás, esse personagem, visto brevemente em uma cena de cobrança (“por onde andou?”) e em outra de sexo desaparece em uma das elipses do roteiro.
A câmera na mão permanente é justificada pela instabilidade emocional dos personagens, tendo como cenário de fundo uma Paris quase anti-turística mas muito bem fotografada por Nelson Yu Lik-wai (o mesmo de filmes de Zhang Ke Jia). A fotografia, assim como a edição bem pontuada de Juliette Welfling (de O Escafandro e a Borboleta - quando foi indicada a um Oscar - e também de O Profeta), colaboram com a direção tensa de Lou Ye - que não fala francês, tendo dirigido o filme (que se passa em sua maior parte na França) com ajuda de intérpretes.
O roteiro contou com Jie Liu-Falin, autora do romance original, Fleur. O nome ‘Hue’ quer dizer “flor”. A atriz Corinne Yam a quem cabe o delicado papel de “Flor” mostra-se enigmática em seu semblante menos modulado, exceto nas violentas cenas de sexo de alta voltagem erótica ainda que não haja “sexo explícito” e nem mesmo nudez completa.