Críticas


DEUS DA CARNIFICINA

De: ROMAN POLANSKI
Com: KATE WINSLET, JODIE FOSTER, CHRISTOPH WALTZ, JOHN C. REILLY
06.06.2012
Por Luiz Fernando Gallego
MARIONETES ESTEREOTIPADOS EM AÇÕES PREVISÍVEIS

O nome do mais recente filme de Roman Polanski, O Deus da Carnificina (assim como Carnage no título em inglês e Le Dieu du carnage, como na peça original francesa de Yasmina Reza) já antecipa que a civilizada reunião dos dois casais protagonistas da trama nem sempre vai preservar o verniz de bons modos que os personagens pretenderam estabelecer de início.



O motivo do encontro já vem de um “escape” das regras sociais de boa convivência: o filho do casal visitante havia agredido o filho do casal que está sendo visitado. Tal situação em si mesma já mobiliza feridas narcísicas em ambas as partes: nos agredidos, pelas seqüelas (perda de dentes incisivos, olho roxo); e, nos agressores, pela implicação moral desaprovadora de transgressões às normas civilizatórias.



A origem teatral do roteiro cinematográfico (e sua provável fidelidade à peça, já que é assinado pela própria Yasmina Reza em conjunto com o diretor Polanski) não seria uma questão para o cineasta que trabalhou tantas vezes com situações desenvolvidas em clima “huis-clos”. Se não necessariamente em ambiente único (como no caso de A Morte e a Donzela, também extraído de obra original para teatro), uma boa parte de seus filmes se passa em cenários claustrofóbicos, mesmo quando em locações abertas, como no lago – e no barco – de A Faca na Água; ou na região isolada com a bizarra construção de Armadilha do Destino - cujo título original já era mesmo Cul-de-sac.



Mesmo tendo locações variadas, O Bebê de Rosemary, O Inquilino e Repulsa ao Sexo tinham seus momentos mais tensos transcorrendo em interiores de apartamentos sinistros. E até mesmo a mansão moderna em praia isolada de O Escritor Fantasma quase se transformava em personagem importante para a narrativa visual de uma forma de “aprisionamento”.



Desta vez, entretanto, o resultado não foi tão bem sucedido, apesar da evidente habilidade com que a câmera de Polanski se move no apartamento do casal vivido por Jodie Foster e John C. Reilly, os pais do garoto agredido. E no uso competente da tela larga ampliando o espaço restrito de uma sala de estar e permitindo marcações mais variadas e movimentadas dos atores dentro do quadro bem iluminado pelo fotógrafo habitual dos últimos filmes de Polanski, Pawel Edelman. O que fica – indevidamente - transparente é a carpintaria teatral na evolução da situação de base.



Para recorrer a uma metáfora, diríamos que sensação foi a de que ficaram explícitos demais os cordões que movimentam as marionetes, cordões que deveriam permanecer invisíveis. Aliás, os personagens não deveriam lembrar marionetes, mas é o que ocorre a despeito do elenco, em princípio respeitável, mas insuficiente para vencer os estereótipos aos quais tentam dar maior vitalidade. Nesse aspecto, o melhor desempenho é o de Kate Winslet como a constrangida mãe do menino agressor, sendo que Christoph Waltz como seu marido só encontra o tom menos caricato (que já vem do desenho do personagem: aquele tipo que não desgruda do celular) já na parte final da projeção. Que já é bem econômica nos seus 80 minutos, afinal de contas, pertinentes, pois o desenvolvimento do enredo se esgota muito antes do filme acabar. Jodie Foster, como faz frequentemente, alterna bons momentos com overacting, enquanto John C. Reilly está bem dentro de sua linha habitual mais “naturalista”, permitida pelo personagem que é, ao menos aparentemente, o mais “simplório”.



Pode ser que no palco sejam mais aceitáveis as mudanças de tom e os rearranjos do quarteto: já seria de se esperar que cada casal acabe expressando seus ressentimentos sobre o outro, reduzindo ou abandonando a cortesia a que se obrigaram de acordo com os costumes entre hóspedes e hospedeiros; também não deixa de ser razoavelmente previsível (ainda mais se já vimos o trailer) que em algum momento haverá um arranjo de sexos, com a cumplicidade masculina desagradando os princípios mais frequentemente defendidos pelas mulheres. E/ou vice-versa.



A questão é que os saltos de uma “composição de forças” (um casal versus o outro) para um novo embate (que pode ser de três contra um; ou "elas contra eles") não se dá de modo minimamente fluente, parecendo que as coisas mudaram apenas pela decisão e interferência de um “deus ex machina” responsável pelo roteiro, seja a autora teatral, seja o cineasta co-roteirista, seja porque o desejo conjunto de ambos assim determinou na manipulação dos personagens/marionetes.



Mais primária ainda é a desengonçada tentativa (envergonhada?) de “sair do ambiente teatral” (ou que outra justificativa haveria?) de duas ou três saídas dos visitantes no sentido de irem embora, levando a cena para o hall de elevador. Mas eles voltam porque... quem os recebera lembrou que “nem oferecera um cafezinho”(!) que é imediatamente aceito pelos que iam pegando o elevador (!!!)



Uma pessoa conhecida que assistiu à encenação carioca do texto de Y. Reza garante que no palco não havia tal movimentação, supérflua e – pior - totalmente inverossímil dentro do naturalismo cinematográfico adotado, pois a situação constrangedora para os pais do menino agressor parecia inicialmente “resolvida”; e qualquer um, seja com a cara enfadada de Christoph Walk como o pai, seja com o jeito desconfortável expresso por Kate Winslet como a mãe, estaria querendo ir embora rapidamente e sem cafezinho algum.



Mas tal ida-e-volta ainda vai se repetir deixando a impressão de que serve apenas para a ação poder seguir em frente e o filme não acabar logo... Se isso não havia no teatro, a inclusão no filme fica mais questionável, pois nem faz parte do que é a “carpintaria teatral” exposta em demasia na tela - um aspecto desastrado que o roteiro não conseguiu evitar (ou só fez acentuar) como nas mudanças de atitudes dos personagens. Sem fugir da abordagem naturalista, o que poderia ser uma ácida farsa buñueliana caminha para um clima de quase-chanchada italiana de décadas passadas.



E como já foi dito, os personagens soam como marionetes estereotipados: o de Jodie Foster, por exemplo, surge tão politicamente correta ao escrever sobre a África e ao mesmo tempo cuidando de seus livros com reproduções de quadros, cuidadosamente expostos em cima da mesa de centro como se fossem pinturas originais de inestimável valor; além de interferente em demasia ao emitir juízos sobre os outros, acaba soando desconfortavelmente arrogante na performance da atriz, talvez mais do que deveria. Também ficam ainda mais reducionistas os tipos masculinos: “o-advogado-que-não-larga-o-celular” e que talvez também incorra em atitudes moralmente reprováveis por defender clientes indefensáveis; e “o-que-vende-ferragens” e parece submisso a uma mãe mais explicitamente interferente (por telefone fixo) do que sua mal dissimulada mulher.



O filme pode ter sido mais feliz em outra tentativa de fingir que não é teatro: um breve prólogo que faz par com o epílogo acrescentado à peça (com boa música de Alexandre Desplat) que se passam ao ar livre - como era comum em filmes envergonhados de serem “teatro filmado” (quando já se fez, muitas vezes, ótimo cinema em cenários fechados de interiores. A filmografia anterior do próprio Polanski o comprova).

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