360, o mais recente filme de Fernando Meirelles, tem roteiro de Peter Morgan (o mesmo de A Rainha, 2006, e de Frost/Nixon,2008) sendo livremente inspirado em uma peça vienense de 1920 escrita por Arthur Schnitzler, autor do “Romance de Sonho” que Kubrick adaptou como De Olhos Bem Fechados.
Várias vezes levada às telas, “Reigen” (título original do texto teatral) teve sua primeira e mais famosa versão cinematográfica em 1950 com o clássico de Max Ophuls, La Ronde. Este “carrossel” amoroso começava com uma prostituta e um soldado, seguindo-se outra relação sexual do mesmo soldado com outra moça - que na cena seguinte encontrava novo parceiro... até que o círculo se fechava com um nobre usando os serviços da mesma prostituta da cena de abertura.
Talvez um dos temas psicanalíticos que tanto provocavam a admiração de Freud pelo que Schnitzler escrevia fosse o da variabilidade na escolha do objeto para o sujeito satisfazer suas pulsões sexuais. Para Freud, a pulsão busca a satisfação, sendo mutável o objeto para atingir este alvo – e era isso o que se via na “ciranda” sexual da peça que tanto escândalo provocou em 1920. Quase um século depois, ficar limitado a esta abordagem poderia soar pouco original. E ainda que o roteiro de Morgan proponha um circuito de relacionamentos intercambiáveis, ele foge à rigidez das dez cenas com dez casais reciclados (como pode ser visto no filme de 1950). Mas é também com uma moça sendo fotografada (em Viena) para divulgar sua imagem junto a clientes interessados em sexo pago que temos o ponto de partida para percorrer os “360 graus” que o novo roteiro desenvolve. Infelizmente, com altos e baixos.
Se é menos esquemático que nem sempre sejam relações sexuais os pontos de contacto entre um “núcleo” de personagens e outro (saindo de Viena para Londres, passando por Paris e Denver, envolvendo etnias árabes, negras e até mesmo dois personagens brasileiros), é a partir do projeto de encontro de um homem de negócios com uma prostituta que o carrossel atual vai ser posto em marcha. Não cabe revelar aqui os lances do enredo para quem ainda não viu o filme, mas quem conheceu outro roteiro de Morgan, Além da Vida, filmado por Clint Eastwood, poderá lembrar que o roteirista - que tanto acertou nos dois filmes citados no primeiro parágrafo acima - nem sempre é tão feliz no entrelaçamento de suas pequenas histórias para compor um painel mais amplo - como pretendeu aqui.
Alguns dos pontos mais frágeis estão justamente nos personagens brasileiros interpretados por Maria Flor e Juliano Cazarré: ele sai de cena logo após servir ao núcleo que envolve o casal Rachel Weisz e Jude Law, ficando como coadjuvante menor para também disparar a ação de Maria Flor; e a atriz tem que enfrentar o interesse de sua “Laura” por um envolvimento casual não muito convincente. Por outro lado, é em volta dela que vamos encontrar as duas melhores interpretações de um grande elenco que se mostra sempre - no mínimo - correto: Ben Foster como um recém-libertado prisioneiro por crime sexual, e especialmente Anthony Hopkins, como um pai que não consegue desistir de encontrar a filha desaparecida há muitos anos. Não há como ficar indiferente a Hopkins no longo monólogo da última cena em que seu personagem aparece. O jovem crítico Gabriel Papaléo chamou nossa atenção para a analogia (em situações diametralmente opostas) entre o personagem de Foster e o de Jammel Debbouze, um argelino que segue a religião islâmica, em crise pelo interesse despertado por uma mulher casada. Se este, mesmo recorrendo a uma terapia (psicanalítica?) é prisioneiro da religião que interdita a satisfação de seu desejo, Foster é prisioneiro de seu desejo, provavelmente pervertido, pois já o levou a cumprir pena por “crime sexual”.
É assim que, mesmo abrindo mão da repetição de duplas exclusivamente sexuais, a questão sexual atravessa praticamente todas as situações do filme. O que se passa entre Hopkins e Maria Flor é mais paternal do que qualquer outra coisa, mas ele teme que “Laura” repita o destino trágico que ele imagina ter sido o de sua filha desaparecida: envolvimento (sexual, casual?) com alguém que a matou.
Ainda que o roteiro possa ser problematizado em detalhes de outros “núcleos” do círculo, a direção de Fernando Meirelles mostra-se fluente, e o resultado final, neste aspecto, também contou com ótima edição de Daniel Rezende. Ainda cabe destaque para o uso da música sem exageros na trilha sonora e para a fotografia de Adriano Goldman.
Se os autores quiseram mostrar como as pessoas tentam ficar melhores mesmo que falhem (sic-Meirelles) ou repisar o tema de que uma decisão individual interfere nos destinos de outras tantas pessoas (sic-Morgan), o que fica mais evidente no filme é mesmo a questão do desejo (Schnitzler) e suas vicissitudes (Freud).