Steven Soderbergh vê o cinema como um substantivo comum. Isso não é ruim. Desde sua estréia com sexo, mentiras e videotape é assim. O título, em minúsculas, por si só, desqualificava o cinema. O filme era um meio para se chegar ao que realmente importava. Não o filme em si, mas a vida, a gente, o amor gelado, a traição e a dor. A câmera - não por acaso de vídeo - ficava lá registrando isso passar. O cinema é uma arte como outra qualquer, dizia Soderbergh. Provavelmente a mais vulgar e impessoal entre todas.
Em Full Frontal, Soderbergh volta a desqualificar o cinema. E, volta-se a dizer, não é aí que mora o problema. Passaram-se quinze anos desde a estréia mas o cinema não mudou tanto assim. O primeiro filme lhe valeu fama e uma Câmera de Ouro no Festiva de Cannes, mas o cinema continua sendo menos importante do que a vida que acontece fora dele. Soderbergh continua percebendo isso, mas agora filma com menos ingenuidade e mais amargor. Talvez porque tenha descoberto ser capaz de fazer qualquer tipo de filme. Cinemão e cineminha. Traffic e Onze Homens e um Segredo jogam no primeiro time. Full Frontal no segundo. Erin Brocovich não é exatamente nenhuma coisa nem outra, mas serviu para o diretor se aproximar de Julia Roberts.
Talvez isso justifique a presença da atriz nesse aqui. Amigos, ok, amigos. O filme começa com imagens limpas de uma trama dentro da trama. Os letreiros são propositadamente confusos e Julia Roberts aparece incrivelmente feia, como para confirmar que as coisas ali não são o que parecem ser. Na verdade, a trama real é mostrada como num vídeo caseiro plitotado pelo sobrinho chato numa festa de casamento: granulado, sombrio, hesitante. É uma diferenciação simbólica e ingenuamente original. A ficção - que toma quase metade do filme - é feita de diálogos débeis e digressões estúpidas sobre o modo de vida hollywoodiano. A "realidade" é quase tão estúpida quanto a ficção, mas os diálogos são menos elaborados.
Passam pela frente da câmera digital (pilotada pelo próprio diretor) um punhado de personagens que poderiam ter saído de um filme de Altman. Ou de filmes como Aniversário de Casamento. Gente de cinema, na maioria, aborrecidos, entediados, com problemas sexuais. David Duchovny (de Arquivo X), chefão de um estúdio, arma sua barraca numa sequência no mínimo grotesca. Há alcool, drogas e poucas idéias na cabeça. São mais ou menos vinte personagens procurando inutilmente por um autor. Mas Soderbergh parece disposto a provar que qualquer um poderia tocar o botequim. E simplesmente finca o cotovelo no balcão.
# FULL FRONTAL
EUA, 2002
Direção e Fotografia: STEVEN SODERBERGH
Roteiro: COLEMAN HOUGH
Produção: SCOTT KRAMER e GREGORY JACOBS
Montagem: SARAH FLACK
Música: JACQUES DAVIDOVICI
Elenco: BLAIR UNDERWOOD, JULIA ROBERTS, DAVID DUCHOVNY, CATHERINE KEENER
Duração: 101 min.