Críticas


LIV & INGMAR

De: DHEERAJ AKOLKAR
Com: LIV ULLMANN, INGMAR BERGMAN
13.12.2012
Por Luiz Fernando Gallego
A DOR COMO UMA BENÇÃO?

A atriz e diretora Liv Ullmann (74 anos em 16/12/2012) aceitou que um diretor indiano e iniciante em longas, Dheeraj Akolkar, filmasse uma entrevista com lembranças de sua relação com o cineasta Ingmar Bergman (1918-2007) - mas apenas durante dois dias: em seu país, Noruega (embora ela tenha nascido em Tóquio), e na Ilha de Farö, Suécia, onde Bergman construiu a casa de seus sonhos (sonhos dele), exatamente quando estavam juntos.



Às cenas de Liv rememorando episódios íntimos e de momentos em que foi dirigida por Bergman, Akolkar interpolou trechos de vários desses filmes em que ela atuou (como A Hora do Lobo, Paixão de Ana, Cenas de um Casamento, etc) - o que pode se constituir em um dos aspectos mais interessantes do documentário Liv & Ingmar, entrando em circuito no Brasil após ser exibido em alguns festivais (Oslo, Nova York, São Paulo). Interessante, no caso, para os que gostam de encontrar motivações biográficas nas realizações dos grandes artistas. Claro que sempre foi possível admirar os filmes de Bergman como obras autônomas - e o que podemos perceber a partir das revelações de Liv foi como ele transformava o que era pessoal em universal, raramente ficando apenas em torno do próprio umbigo, sendo capaz de partir do que teria sido factual, realmente vivido e bem íntimo para recriações ficcionais de interesse coletivo.



Se isto já era sabido, especialmente nas questões do diretor com seus pais e com a religião em obras como Luz de Inverno e Fanny e Alexander, por exemplo, o que fica mais evidente a partir da (ótima) edição deste documentário é que até mesmo o dia-a-dia do casal podia estar presente no modo como ele encenava seus roteiros. Chega a ser desconfortável saber que Bergman usava casacos pesados em um dia de 30º negativos, mas deixava seus atores, Liv e Max Von Sydow, mal abrigados e tiritando de frio em um barco para as cenas finais de Vergonha (1968). Pior ainda, quando Liv conta que, no mesmo filme, em uma cena externa, perto de uma casa incendiada, ele queria que ela se aproximasse cada vez mais do fogo. A expressão no rosto de Liv, quando vemos este trecho tal como ficou no filme, seria então de uma grande atriz transmitindo a vivência perplexa de sua personagem com os horrores da guerra – ou da então mulher de Bergman, ao perceber que “não era o diretor pedindo o que queria que a atriz fizesse - e fazemos o que os diretores pedem - mas o que Bergman, com raiva de Liv naquele dia, gritava para mim”?



No início, tudo parecia encantamento: o grande cineasta de 46 anos e a belíssima atriz de 25, trabalhando em um dos filmes mais importantes da história do cinema, Persona, de 1966 (que as legendas do documentário referem pelo imbecil título brasileiro, “Quando duas mulheres pecam”, já em desuso por aqui). Admirável em um papel quase totalmente mudo, era a revelação mundial da sua capacidade interpretativa, unindo-se a um time de outras inesquecíveis atrizes “bergmanianas” como Ingrid Thulim, Bibi Andersson e Harriet Andersson, dentre outras – sendo que as duas últimas mencionadas também mantiveram relacionamentos íntimos com o cineasta antes dela, e tal como Liv, mesmo depois de terminados os casos amorosos, prosseguiam atuando em seus filmes e peças, sempre que convocadas por ele. Mas Liv nos faz acreditar que, com ela, as coisas permaneceram em grau de intensa proximidade, mesmo quando afastados fisicamente.



Ela narra as aproximações iniciais e as tentativas de resistir por parte dela, e como Bergman lhe fez a côrte; e ainda como se sentiu mal ao comunicar à sogra (ela era casada na Noruega) que esperava um bebê de outro homem. Mas alguma coisa que ela conta hoje em dia, caso correspondesse mesmo ao que sentiam na época prenunciava que a relação não poderia se sustentar por muito tempo: para ela, era como se no início estivesse "entre paredes macias”, mas ele lhe escreveu que se sentia exposto, como que “sem pele”.



Conta como procediam como crianças na ilha em que Bergman já havia filmado anteriormente Através de um espelho (1961) - e não seria fora desse recorte "infantilizado" que ela, insegura, buscava segurança na relação – e ele, “buscava uma mãe”. Quando a mãe de Ingmar morreu, ele teria lhe dito que se sentia sem apoio nenhum.



Mais do que isso tudo, impressiona o que ficamos sabendo de uma carta em que ele afirma estarem “dolorosamente ligados”. Mesmo que ela diga que tal dor foi “como uma benção”, o perfil dessa mulher (ainda hoje, com mais de 70 anos) não parece ser o de quem se entregaria por muito tempo a tal sentimento na intensidade dos enormes ciúmes dele, afastando-a dos amigos, de visitas, cercando o terreno da casa com um muro de pedras, exigindo que ela, quando saía, voltasse para casa em hora marcada. Até que ela percebe que viveria com a filha deles “perto dele, mas não com ele”. Diz que se sentia “em um sonho de outra pessoa” e que não conseguia mais dar o que ela queria receber.



Apesar do fim do relacionamento eles teriam mantido correspondência, telefonemas e conversas, independentemente de volta e meia trabalharem juntos em outros filmes. Quando deixou de filmar para salas de cinema, limitando-se a realizações para a TV, Bergman deu a Liv dois roteiros seus para ela dirigir, sendo que um deles faz parte de uma espécie de trilogia mais autobiográfica sobre suas origens, tendo sido os outros dois filmados em 1992 por Bille August (As Melhores Intenções, com o namoro dos pais de Ingmar) e por Daniel Bergman, um de seus muitos filhos, o único dentre os homens que arriscou uma carreira de diretor (Crianças de Domingo, abordando um dia de verão do pequeno Ingmar com seu pai, um severo pastor luterano, fazendo juntos uma pequena viagem de trabalho paterno). Para Liv, ele destinou, em ’96, Confissões Íntimas (inédito no Brasil), exatamente o de tema mais delicado, no qual a esposa de um pastor, vivida pela mesma atriz que interpretara sua mãe no filme de ’92, se envolvia em uma relação extra-conjugal .



O filme é pontuado por outros subtítulos tais como “amor”, ”solidão”, "raiva", “saudade”... e “dor”, tema que retorna em vários momentos do relato de Liv, desde “a dor de ser abandonada, que pode não ser como a dor da fome ou da destruição, mas é dor", até a reafirmação dele de que faziam "sentir um ao outro, não importando se isso fosse doloroso”.



Não se pode deixar de pensar que, por mais que Liv pareça absolutamente espontânea e mesmo comovente em seus depoimentos, estamos presenciando as falas de uma atriz excepcional – e cineasta aplicadíssima, autora de quatro longas – consciente de que estava em frente a uma câmera que registra o que ela tem a dizer para um filme. Não se trata de questionar a sinceridade da “pessoa comum” que também é a atriz Liv Ullmann, mas não se pode exigir que Liv não seja a atriz que é no modo como fala de aspectos de sua vida.



Pode-se questionar mais propriamente se o diretor Dheeraj Akolkar não passa de mais um agente da onda atual de “evasão de privacidade”, sublinhando quase todo seu filme com uma algo exagerada música “romântica” - que não cabe nos perfis de Bergman nem de Liv, mais condizentes com a “Sarabanda” da 5ª. Sonata para Cello de Bach que Bergman utilizou em mais de um filme, redundando até mesmo no título de sua obra final, Sarabanda (2003), no qual Liv também está presente. Felizmente, a “Sarabanda” de Bach está no documentário. Mais pertinente do que a trilha musical é a bonita fotografia - em tons predominantes de azul, como os olhos de Liv, quase sempre brilhando - para os cenários da Ilha de Farö

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário