Quando dizem que uma das coisas boas do cinema é a capacidade de dar asas à nossa imaginação, é porque graças a ele podemos sair de uma sessão pensando coisas aparentemente absurdas, tipo: “e se o Silvio Santos fosse um agente do SNI durante a ditadura militar, com permissão para matar?”. Então antes que você fique se perguntando mas que diabos tem o Silvio Santos a ver com a estréia de George Clooney na direção, aqui vai a explicação: Confissões de Uma Mente Perigosa é baseado no livro autobiográfico de Chuck Barris, o produtor e apresentador que nas décadas de 60 e 70 revolucionou a televisão americana criando game shows, tipo Namoro na TV e Show de Calouros. Barris jura que, nessa mesma época, foi um eficiente agente secreto da CIA, com 33 assassinatos no currículo.
Não há provas disso, mas a gente finge que acredita, porque, afinal, o compromisso do cinema com a verdade é tão sólido quanto as chances de o Botafogo voltar à primeira divisão do futebol brasileiro. Ainda mais quando lemos nos créditos que o roteiro tem a assinatura de Charlie Kaufman, cuja mente fértil foi capaz de bolar roteiros geniais como Quero Ser John Malkovich ou picaretagens criativas como Adaptação. Ou seja, Charlie Kaufman e Chuck Barris, tudo a ver.
Kaufman teve liberdade para acrescentar novos elementos ao livro de Barris, e uma de suas contribuições foi inventar que a mãe do produtor o fazia se vestir de menina na infância. A importância que isso teria na formação da personalidade de Barris não fica clara no restante do filme. Assim como não dá pra justificar a função, além da meramente narrativa, das cenas com depoimentos de pessoas que conviveram com Barris, que quase nada acrescentam ao que está sendo visto (com exceção do depoimento do próprio, que encerra o filme).
A melhor contribuição de Charlie Kaufman ao filme se dá quando ele coloca Brad Pitt e Matt Damon para fazerem uma divertida participação especial. É muito pouco – não mais que cinco segundos. De resto, Kaufman desperdiça a oportunidade de promover uma bela reflexão sobre a influência (um tanto maléfica) que Chuck Barris teve nos rumos da cultura americana a partir dos anos 60 – e, consequentemente, no resto da civilização ocidental -, ao abrir as portas para a “evasão de privacidade” na televisão.
Como no recente Prenda-me Se For Capaz, de Steven Spielberg, também centrado em um personagem verídico com uma história absurda (mas comprovada), a diversão é o que parece interessar mais aos realizadores. Com isso, a faceta agente da CIA do personagem ocupa espaço demais através de uma trama policialesca de tintura noir, que não consegue cativar tanto o espectador quanto os bastidores de sua carreira na televisão, apesar dos bons desempenhos de Julia Roberts, Rutger Hauer e especialmente de Sam Rockwell, excelente como Barris.
Já George Clooney não faz feio em sua primeira aventura por trás das câmeras. Se não consegue impor um estilo pessoal, ao menos mostra personalidade para tentar fazer um filme esteticamente ousado, claramente usando as influências que teve do diretor Steven Soderbergh, com quem trabalhou em Irresistível Paixão (Out of Sight) e Solaris, e que acabou virando produtor executivo do filme. Com o auxílio de Kaufman no roteiro não-linear e do bom Newton Thomas Sigel na direção de fotografia estilizada, explorando ângulos inusitados e diferentes matizes, Clooney conseguiu dar a seu filme aquela “cara” de filme independente, embora Confissões de Uma Mente Perigosa esteja mais para Prenda-me Se For Capaz do que para O Mundo de Andy (Man on The Moon), de Milos Forman, que no fundo deveria ter sido sua principal referência.
# CONFISSÕES DE UMA MENTE PERIGOSA (CONFESSIONS OF A DANGEROUS MIND)
EUA/Canadá/Alemanha, 2002
Direção: GEORGE CLOONEY
Roteiro: CHARLIE KAUFMAN
Produção: ANDREW LAZAR
Produção executiva: STEVEN SODERBERGH e RAND RAVICH
Fotografia: NEWTON THOMAS SIGEL
Montagem: STEPHEN MIRRIONE
Música: ALEX WURMAN
Elenco: SAM ROCKWELL, DREW BARRYMORE, JULIA ROBERTS, GEORGE CLOONEY, RUTGER HAUER
Duração: 113 min.
site: http://vgn.ifilm.com/confessions