Biografias e documentários inspirados em "monstros sagrados" das áreas mais diversas são exercício de muitos riscos, entre eles a reverência excessiva diante do mito, o entusiasmo pela aproximação com a figura idealizada, o desejo de enfatizar méritos já consagrados. Assim, sob o prisma da exaltação, estariam supostamente justificadas a escolha e a dedicação ao tema.
Nelson Freire, dirigido por João Moreira Salles, a partir de argumento de Flávio Pinheiro, tem de saída um grande mérito: deixar Nelson Freire ser o que ele é. Ao piano, um monstro musical - no melhor dos sentidos. Fora do palco, tímido, reticente, hesitante - também no melhor dos sentidos.
Há artistas capazes de discorrer brilhantemente sobre seus ofícios. Outros, nem tanto. É o caso de Nelson Freire. É com evidente esforço que ele tenta explicar sua relação com a música. E está coberto de razão. Para explicá-la, não precisa de palavras. Basta o teclado. Talvez a pista para o seu recato verbal esteja na convicção inabalável de que a música vem sempre em primeiro lugar. O intérprete não deve se colocar acima dela, é o lema e a prática de Nelson Freire, avesso a qualquer forma de estrelismo - apesar de reconhecido em todo o mundo como estrela de primeiríssima grandeza ao piano.
Essa postura do intérprete reverente à música e aos seus mistérios é respeitada por João Moreira Salles e por isso acaba propiciando um privilegiado encontro do artista com o espectador - e sem a intermediações de depoimentos explicativos. A câmera de Toca Seabra, na maior parte do tempo, fica a uma distância respeitosa do personagem, com alguns momentos de proximidade, sobretudo em ambientes domésticos.
O modelo do documentário dividido em 31 blocos, segue a linha de 32 curtas sobre Glenn Gould (32 short films about Glenn Gould), dirigido por François Girard em 1993, título motivado pelas 32 partes das Variações Goldberg de Bach, cuja gravação consagrou o genial pianista canadense. Apesar do formato semelhante - a narrativa é dividida em blocos que poderiam, em tese, serem organizados em várias ordens - os dois filmes partem de uma diferença fundamental. Gould tinha morrido no ano anterior às filmagens e é representando por um ator. Nelson Freire, felizmente, está muito vivo.
Filmado no Rio e São Paulo, na França, na Bélgica e na Rússia em 2000/2001, o documentário embaralha as partes mas acaba contando o percurso de Nelson Freire, da criança de saúde frágil em Boa Esperança, Minas Gerais, onde nasceu, aos dias de hoje. A infância do menino prodígio e os anos de formação são revelados aos poucos e tem dois belos momentos: a carta do pai lida com forte expressão por Eduardo Coutinho, e a carta da professora de piano Nise Obino. Há o registro de gloriosas apresentações - o segundo concerto de Brahms, no Municipal do Rio, sua atuação com a Filarmônica de São Petersburgo, e também de ensaios e encontros com o piano em vários pontos do mundo. Com um deles, por exemplo, não se entende de jeito nenhum, admite o músico, conformado. Pianos, como pianistas, também têm alma, temperamento.
Antes de entrar em cena, vemos Nelson andando pelos corredores em concentração total. Depois da energia furiosa da apresentação, volta a ser gente. Quer um copo de água e daria a alma por um cigarro. Enfrenta os fãs com educada resignação e tenta mostrar descontração no encontros com amigos (como com a pianista Martha Argerich), ou diante de musicais dos anos 40 que assiste pela TV. Confessa que daria tudo para tocar de improviso, como os grandes jazzistas americanos. Há humor, muitas vezes involuntário, como sua reação muda ao ser perguntado por um jornalista francês “se o fato de ser um pianista de um país quente muda alguma coisa na maneira de tocar”. É dura a vida de uma celebridade. Os blocos narrativos se sucedem de forma ritmada, cadenciada, musical. Ao final de 100 minutos, Nelson Freire se impõe como um belo retrato de um artista sem afetação e voltado para o essencial: a música.
# NELSON FREIRE
Brasil, 2003
Direção: JOÃO MOREIRA SALLES
Produção: VIDEOFILMES
Argumento: FLÁVIO PINHEIRO
Roteiro: JOÃO MOREIRA SALLES, FELIPE LACERDA E FLÁVIO PINHEIRO
Fotografia: TOCA SEABRA
Edição: FELIPE LACERDA E JOÃO MOREIRA SALLES
Som direto: ALOYSIO COMPASSO
Gravação de concertos: DENILSON CAMPOS, GABRIEL PINHEIRO, LIONEL PAUTY
Produção executiva: MAURICIO ANDRADE RAMOS
Duração: 102 minutos