Ensinam os manuais de roteiro que uma boa estória deve ter elementos dramáticos que prendam a atenção e criem no espectador a expectativa de ser surpreendido a qualquer instante. Os filmes de Spike Lee costumam preencher satisfatoriamente esse requisito, embora não sejam guiados pela obediência a ele. Em A Última Noite, a sensação provocada é a oposta: uma letárgica imobilidade que incomoda, propositadamente. Não há necessariamente uma estória a ser contada, e sim pequenos fragmentos de vida que se juntam para compor um painel que traduz, de forma sensível e brilhante, o espírito da Nova York pós 11/9.
Após o flagrante que causou a ordem de prisão para o traficante Monty, as quase duas horas restantes do filme se resumem à tentativa do personagem de encontrar a sua verdade pessoal, expiando culpas nos diálogos com sua consciência e com os amigos mais próximos. Algo que encontra eco no cenário em que se desenvolve a ação, uma Nova York moralmente devastada pela tragédia. Ao invés de oferecer grandes reviravoltas na trama, Spike Lee anestesia pelo formalismo. Há poucos traços daquele diretor provocador, consagrado pela câmera inquieta, música pulsante e temas explosivos. Uma opção estética adequada a um filme sobre personagens quase nocauteados por seus dilemas pessoais, que parecem sem forças para levantar e virar os rumos do jogo.
Em suas cruzadas étnicas e socio-culturais, Spike Lee já foi taxado de extremista e intolerante, muitas vezes sendo vítima da intolerância de seus próprios críticos. As respostas costumavam vir no mesmo tom radical, culminando no brilhante A Hora do Show (Bamboozled) , seu filme anterior. Aqui ele baixa a bola para dar uma grande lição em todos. Afinal, A Última Noite é um filme justamente sobre a forma de olhar o outro e a (falta de) chance de repensarmos nossas escolhas. Um discurso moralista mas necessário em prol da tolerância, sintetizado por duas seqüências magníficas que se completam: o diálogo de Monty com sua imagem refletida num espelho pichado com a frase “fuck you”, em que ele manda às favas todos que o rodeiam, e o passeio imaginário pela “nova vida”, no fim de sua via crucis rumo ao purgatório.
A antiga Nova York de Spike Lee, que ele soube pintar com cores tão fortes e vibrantes, pode ter sido sepultada definitivamente pela poeira cinzenta e o vazio desolador de uma cidade moralmente em escombros. Mas ele não foge dessa realidade: continua fiel a ela, traduzindo-a como poucos, e dessa forma reerguendo-a também, o que é admirável.
# A ÚLTIMA NOITE (The 25th Hour)
EUA, 2002
Direção: SPIKE LEE
Produção: SPIKE LEE, JON KILIK, TOBEY MAGUIRE E JULIA CHASMAN
Roteiro: DAVID BENIOFF
Fotografia: RODRIGO PRIETO
Montagem: BARRY ALEXANDER BROWN
Música: TERENCE BLANCHARD
Direção de arte: JAMES CHINLUND
Elenco: EDWARD NORTON, PHILIP SEYMOUR HOFFMAN, BARRY PEPPER, ROSARIO DAWSON, ANNA PAQUIN, BRIAN COX, TONY SIRAGUSA
Site do filme: http://25thhour.movies.go.com/
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