Para Woody Allen, as fronteiras entre cinema e realidade podem ser tão fluídas quanto juras de amor para sempre. E provou sua tese das formas mais variadas. Em A Rosa Púrpura do Cairo um ator entediado rompia a barreira da tela para encontrar uma fã deprimida que só encontrava alívio na sala escura. Já em Meia-noite em Paris, um roteirista transitava do século XXI aos anos 20 com a facilidade de quem compra um ticket de metrô.
Em Paris-Manhattan, a farmacêutica Alice (Alice Taglioni) é apaixonada desde a adolescência pelo maior nome da comédia americana, com quem estabeleceu uma linha direta a partir do pôster que mantém em seu quarto. Quando a barra pesa, a moça apela para o terapeuta de plantão, que lhe devolve a devoção com sábios conselhos existenciais. Na vida profissional, Alice mantém ao lado de medicamentos uma coleção de filmes do guru e não hesita em substituir antidepressivos por obras que considera mais eficazes para combater as aflições da alma.
Na vida real, Alice compartilha vários pontos de identificação com vida e obra do mito: família judia, ciúmes da irmã (como em Hannah e suas irmãs), a vivência de episódios burlescos como em Misterioso Assassinato em Manhattan ou Um assaltante bem trapalhão. A moça graciosa e delicada identifica-se, sobretudo, com os crônicos impasses afetivos destilados em sua longa filmografia. A entrada em cena do técnico em segurança Victor (o cantor francês Patrick Bruel) pode reverter esse quadro.
Em seu longa de estréia, a diretora-roteirista Sophie Lellouche assume o papel de tiete assumida do cineasta: utiliza a sua conhecida tipologia dos créditos iniciais, insere standards de jazz na trilha sonora e investe no tom coloquial de situações com potencial explosivo. Apesar de boa atuação do elenco, o filme padece de um ritmo vacilante. O resultado modesto é amenizado pela surpresa final para os fãs de Woody Allen, responsável, direta e indiretamente, pelos melhores momentos deste Paris-Manhattan em temperatura amena.
Crítica publicada em O Globo em 4 de janeiro de 2013