Aqui no Críticos.com.br o que conta é a pluralidade de opinões e pontos de vista. Carlos Alberto Mattos e Luciano Trigo discordaram frontalmente da crítica de Susana Schild para o filme O Tempo de Cada Um e publicam agora suas respectivas visões da obra de Rebecca Miller.
A seguir, leia a crítica de CARLOS ALBERTO MATTOS:
Entre cinéfilos como entre relojoeiros, há os que gostam de As Horas e os que preferem O Tempo de Cada Um. Minha colega Susana Schild deixou explícita a sua opção na crítica ao filme de Rebecca Miller. Seu texto desanca tudo de bom que os indies americanos legaram ao cinema contemporâneo: a inquietação formal, o baixo orçamento, a atenção para as margens da sociedade. Mas de sua leitura não se pode inferir que aquelas qualidades devam ser confundidas com os clichês resultantes. E O Tempo de Cada Um não é um simples amontoado de clichês.
Rebecca Miller fez exercícios de síntese nada desprezíveis dentro de um formato de cinema independente que muitas vezes tem-se rendido à retórica. Suas três mulheres, longe de serem meras abstrações literárias como as do filme de Stephen Daldry, são figuras de carne e osso, vistas em encruzilhadas cruciais de suas vidas afetivas, às voltas com questões muito reais.
Delia (Kyra Seldgwick) rompe uma união violenta e parte ao reencontro de sua personalidade original. É o episódio menos satisfatório porque calcado numa tipologia muito sublinhada. Corre o risco de incompatibilizar o espectador com o resto do filme, que está vários furos acima. O conto seguinte é uma abordagem extremamente interessante do lado erótico da ambição. Greta (Parker Posey) rompe o seu casamento não porque algo vai mal, mas porque ela se redescobre na excitação profissional. O último episódio, em torno da desajustada Paula (Fairuza Balk), é o mais complexo e intrigante. Trata dos efeitos curativos da compaixão e, embora seja o mais dilacerado, é o único que aponta para a reconciliação do casal.
Cada episódio tem um estilo de cinematografia, um tom fotográfico e um sentido de edição próprios, diretamente motivados pelas emoções em jogo. A imagem é áspera e nervosa no primeiro; sensual e sinuosa no segundo; sôfrega mas terna no terceiro. O uso do vídeo digital, partindo de uma razão econômica, resulta em uma forma de filmar que valoriza a proximidade com os rostos e os sentimentos. Mais importantes que as similaridades entre os três casos são as diferenças que compõem um estudo do feminino plural.
Rebecca Miller é uma artista múltipla, talentosa e – diga-se de passagem – belíssima. Tem sofrido na imprensa um preconceito despropositado pelo fato de ser filha de Arthur Miller e mulher de Daniel Day-Lewis. E olhe que ela não apelou a nenhum deles em seus dois primeiros filmes. Mesmo assim, parece difícil perdoá-la por tanta sorte acumulada. O Tempo de Cada Um pode não merecer nenhuma admiração irrestrita, mas tampouco deve ser relegado à vala comum dos modismos. É um filme pessoal, cheio de garra narrativa e dotado de uma perspectiva inquietante sobre as opções da mulher em situações de sufoco.
Os fãs da “beleza artística” de Michael Cunnigham que me perdoem, mas a feiúra humana das criaturas de Rebecca Miller é fundamental.
A seguir, leia a crítica de LUCIANO TRIGO:
O Tempo de Cada Um fala sobre os papéis que escolhemos representar na vida, sobre os momentos decisivos em que fazemos esta escolha e sobre as motivações que nos levam a ela. Não se trata, portanto, de um filme "de mulherzinha". As três protagonistas são mulheres, é claro, mas Rebecca Miller não se preocupa em lançar um "olhar feminino" sobre elas – e não é por casualidade que a voz em off que narra as histórias é masculina. Rebecca poderia abordar questões semelhantes tratando de personagens homens, sem afetar o que o filme tem de mais essencial.
A "cara" de cinema independente é, neste sentido, quase uma armadilha para a diretora, já que pode induzir o espectador, mesmo o espectador profissional, a uma análise formalista, que sublinhe os clichês e cacoetes associados ao rótulo "independente". No aspecto da estrutura narrativa, da montagem ou da fotografia, é certo que O Tempo de Cada Um não apresenta nada de radicalmente inovador. Mas é um filme é cheio de momentos iluminados, quase epifanias, para quem souber quebrar a casca das aparências e mergulhar sua profundidade.
Isso porque as histórias de Rebecca Miller – já que os três episódios se baseiam em contos de sua autoria – se filiam a uma tradição literária e dramatúrgica americana na qual o que importa não está na ação, mas nas entrelinhas. Na superfície, o encadeamento das ações e diálogos de uma peça qualquer de Tennessee Williams ou mesmo de Arthur Miller (pai da diretora) sugere uma leitura dos personagens e dos acontecimentos banal, e no entanto transformações profundas estão se processando de forma subterrânea, o que só fica claro no final do texto. O Tempo de Cada Um é assim.
Desta forma, sem querer estragar o prazer do espectador nem condicionar demais sua visão, o que interessa no primeiro episódio não é o fato de Delia ter um marido que a espanque nem o fato de ela fugir de casa – núcleo temático de tantas produções patéticas para a TV. O momento revelador do primeiro episódio é aquele em que ela redescobre o poder de seu sexo e decide seduzir o filho de seus novos patrões. A forma como a diretora associa essa decisão à adolescência de Delia, quando ela descobrira com surpresa e inocência como seu corpo afetava os homens, é primorosa, transformando um drama óbvio na aparência numa história de final feliz.
Cada uma a seu modo, as protagonistas dos dois outros episódios também fazem escolhas que determinam mudanças estruturais nas suas vidas, tanto interior quanto exteriormente. Como Delia, a insegura e ambiciosa Greta rompe com uma relação que a aprisionava, mas por motivações totalmente diversas. O marido tedioso e acomodado perde subitamente o encanto quando se abrem para ela as portas da ascensão profissional. Mas o personagem masculino decisivo na história não é o marido: é o pai, cuja aprovação é para Greta mais importante que a felicidade simples e rotineira que ela havia contruído. O título do filme sai aliás de uma fala do personagem do pai de Greta.
A história da transformação interior de Paula, no terceiro epísodio é mais ambiciosa, mas também mais previsível: a gravidez, associada a uma experiência inesperada de perda, ao retorno às origens na visita à mãe, e ao encontro na estrada com um adolescente carente, conduz a personagem a abrir mão de seu egoísmo. Neste sentido, Paula é menos senhora de seu tempo que Delia e Greta, o que a torna um pouco menos interessante como personagem. Mesmo assim, no conjunto, O Tempo de Cada Um é um filme maravilhoso, que faz o espectador sair transformado da projeção, e não por acaso foi premiado como o melhor de Sundance no ano passado.
LEIA A CRÍTICA DE SUSANA SCHILD
# O TEMPO DE CADA UM (PERSONAL VELOCITY)
EUA, 2001
Direção e Roteiro: REBECCA MILLER
Produção: GARY WINICIK
Fotografia: ELLEN KURAS
Montagem: SABINE HOFFMAN
Música: MICHAEL ROHATYN
Elenco: KYRA SEDGWICK, PARKER POSEY, FARIUZA BALK, RON LEBMANN
Duração: 85 min.