O dono da história
“Uma vida sem histórias não vale a pena”, sentencia Germain, professor de literatura em crise profissional e pessoal. Idealista, lamenta o baixo nível dos alunos de um ginásio parisiense e mantém, por inércia, o casamento com uma galerista, pródiga em conceitos de arte pós-moderna, mas leitora econômica: se deu por satisfeita com as cinco primeiras e últimas páginas de Ana Karenina. Eis que a antiga paixão do professor - pela literatura, em princípio – renasce diante da redação de um aluno. Seu tema: o fascínio pela família de um colega de classe, sobretudo pela mãe, bela, sedutora, e também “a mulher mais entediada do mundo, obcecada por decoração’. Apenas duas páginas escritas à mão, mas o suficiente para liberar o estopim do mistério que une narrador e leitor em uma relação de submissão e prazer – na melhor das hipóteses.
Claude (Ernst Umhauer), o autor, é um adolescente de 16 anos, raro equilíbrio de beleza, inocência e provocação. Não chega a ser um Tadzio, personagem de Morte em Veneza de Thomas Mann no clássico de Visconti, mas chega perto. Seu talento literário pode ser questionável, mas a habilidade em dominar o mestre que compartilha o prazer da leitura com a mulher, merece nota dez. E de capítulo em capítulo, Dans la Maison (no original) captura o casal em uma escalada crescente de voyeurismo e compulsão sobre a vida alheia, com desfecho inesperado.
Em narrativa elaborada mas acessível, o diretor François Ozon, também autor do roteiro adaptado de peça teatral, reproduz com o público a ambigüidade da relação aluno-professor. Sua missão: cativar o espectador com uma trama em que realidade e fantasia misturam-se sem fronteiras, evidenciando tensões, sobretudo na área sexual. Quem é o sedutor e quem é o seduzido? Quem é apaixonado por quem? Quem manipula quem?
Entre as várias possibilidades em eventual caça aos culpados, pode-se começar pelo poder da imaginação. A partir dela, tudo é possível. Dono de uma filmografia diversificada, formada por dramas (Sob a Areia), thriller (À beira da piscina), comédias (Oito Mulheres, Potiche), desta vez Ozon faz um elogio direto, mas temperado por elegância, ironia e humor finíssimo ao poder das narrativas – escritas, lidas, representadas – ou tudo misturado.
Esse trânsito livre entre vidas vividas e vidas imaginadas está a cargo de um elenco de luxo : um inspiradíssimo Fabrice Luchini (o angustiado professor), a revelação Ernst Umhauer (o anjo diabólico Claude), Kristin Scott Thomas (a sofisticada galerista), e uma amadurecida Emmanuelle Seigner (o objeto do desejo do garoto).
Indicado a cinco prêmios César (o Oscar francês), incluindo filme, diretor e dupla de atores, Dentro da casa é iguaria fina. Na suspeita relação Germain-Claude, tudo pode ser questionado, menos uma evidência: graças a duas páginas de papel, um professor recuperou a graça perdida. Mas afinal de contas, quem é o dono daquela história? Quem embarcar.