A Caça tem a curiosidade de tratar do delicado tema da denúncia de abuso sexual na infância 14 anos depois do mesmo cineasta ter assinado um filme (Festa de Família) no qual filhos adultos denunciavam que, no passado, o pai havia de fato cometido esse crime – sendo que desta vez, ao contrário, o espectador sabe que o homem acusado não fez nada do que é dito sobre ele.
O diretor Thomas Vinterberg e seu co-roteirista Tobias Lindholm parecem ter tido alguma sensibilidade para expor, sem ênfases excessivas, um pano de fundo propício para tal denúncia surgir na boca de uma criança de ar angelical: seus pais discutem muito, ela parece solitária, “foge de casa” com frequência, tem traços de uma neurose infantil (comuns na idade, mas que parecem exacerbados) no sentido de não pisar de jeito nenhum em riscos das calçadas ou dos pavimentos em geral, e tem acesso a uma cena pornográfica vista no tablet do irmão adolescente (e escuta um comentário do rapazola sobre o que ela viu – e que ela vai repetir). Paralelamente a este ambiente emocional pouco acolhedor, ela desenvolve uma relação mais intensa de afeto com ‘Lucas’, um homem recém-divorciado que trabalha na escola (jardim de infância) que a menina frequenta, sendo ele um amigo bem próximo da família. Dá para suspeitar que houve até uma certa instrução e instrumentação “psicanalítica” na exposição desses elementos prévios ao desencadear do drama.
Por outro lado, para estabelecer o clima de “caça” ao acusado, o roteiro coloca na boca dos demais adultos - que acreditam na acusação que a menina fez - a crença de que “criança não mente”, partindo da premissa que a criança só poderia dizer que ‘Lucas’ lhe “mostrou o pipi apontando para cima” se isto tivesse acontecido de fato. Ou seja, a sexualidade infantil mencionada por Freud em 1905 é totalmente ignorada, assim como a “linguagem da ternura” própria da infância, como categorizou Sandor Ferenczi (um dos mais destacados discípulos contemporâneos de Freud) em um texto de 1933, "Confusão de línguas entre os adultos e a criança". “Ternura”, neste caso, deve ser entendida não como ausência de sexualidade, mas como uma modalidade bem anterior à sexualidade adulta, a qual se dará sob o primado das áreas genitais. O adulto, por não reconhecer tal ‘linguagem da ternura” da criança, pode tomar a criança como um igual, ou seja, experimenta a linguagem da ternura como uma sedução de ordem genital; entende a criança na sua “linguagem da paixão” própria do adulto, gerando a tal “confusão” de linguagens. Ferenczi apontava que pode haver uma espécie de sedução por parte da criança sob a forma de brincadeiras correspondentes a um certo modo de organização sexual e psíquica pré-genitais, sendo que algo necessariamente excessivo e qualitativamente diferente poderia ser oferecido de volta à criança: a erotização adultizada do corpo infantil imposta à organização psíquica da criança.
No caso do filme, surge um beijo na boca que a menina dá em Lucas - e que é criticado por ele, causando nela intensa decepção, frustração, raiva e sentimento de rejeição por parte daquele que lhe parecia ser o único adulto de quem recebia afeto e proteção estáveis. A decepção vai fazer com que ela mescle o que já tinha em si mesmo uma aura de semi-“proibido” (o pênis ereto entrevisto no tablet do irmão) como algo que ela passa a afirmar ter visto, na realidade, no corpo de Lucas. Ou seja, ele teria - no mínimo - se exibido para ela.
Mesmo em uma pequena comunidade no interior da Dinamarca, o irmão adolescente da menininha tem um tablet onde ela viu o pênis "apontando para cima" - como o rapazinho comenta, expressão esta que a menina vai repetir como sendo o modo em que viu o "pipi" de Lucas. Ora, hoje me dia seria raríssimo que algum pedófilo passasse à ação propriamente dita sem entrar na internet antes - e muitas vezes - para acessar cenas de pedofilia. Mas o enredo não procura justificar porque, em uma investigação de pedofilia, ninguém foi investigar o computador de Lucas. Ele tem a seu favor apenas e tão somente os relatos incongruentes das demais crianças - pois inúmeras acusações surgem em uma onda de histeria coletiva de outros pais e que passam a induzir em seus filhos relatos semelhantes sobre a suposta conduta perversa do caluniado: as crianças mencionam um porão onde teriam sido abusadas - sem que haja porão na casa de Lucas.
O roteiro poderia usar do fato de Lucas estar recém-divorciado para mencionar que ele nem tinha computador no momento, deixando uma certa inverossimilhança no andamento das investigações agravada à forma estoica (?) como Lucas enfrenta as acusações.
O PARÁGRAFO SEGUINTE TRAZ "SPOILERS" - INFORMAÇÕES SOBRE O ENREDO QUE PODEM NÃO INTERESSAR A QUEM NÃO ASSISTIU O FILME E PRETENDE FAZÊ-LO
O filme desenvolve"a caça" ao homem caluniado paulatinamente, mas de repente precipita-se em uma elipse com a informação de que já se passou um ano e tudo parece estar bem. Como? Para os vizinhos que quase mataram Lucas e seu filho? E ele: como teria "perdoado" o que sofreu? Na cena final, um tiro quase o atinge e vemos a imagem de uma pessoa contra o sol apontando-lhe uma espingarda, sem que se possa identificar quem seria. O personagem aparece novamente em outra ângulo e constatamos que não existe ninguém apontando para ele. Trata-se de mais um "final em aberto", recurso fácil que tem sido frequente em roteiros mais ou menos pretensiosos e/ou que não encontram outro modo mais orgânico de encerrar de modo impactante sua narrativa. Pois há finais "em aberto" pertinentes e orgânicos com o filme e roteiro como um todo. No caso, há uma saída de impacto visual que mobiliza a plateia, mas que soa como um corpo estranho em relação ao restante do filme que vinha sendo levado, em sua maior parte, de modo "realista"/"naturalista". Era uma visão fantasiada por Lucas (o que o filme sugere)? Era uma realidade diegética (que a cena imediata deixa claro que não)?
Fica a ideia de que o clima de perseguição e projeção do mal em uma pessoa da comunidade não acabou - como as poucas cenas imediatamente anteriores sugeriam. Esse vai-e-vem (tudo ficou bem / não, nada ficará bem nunca) é desleal com o espectador. Nada poderia ficar bem nunca mesmo, como na antiga peça de teatro de Lillian Hellman (“The Children’s Hour”, 1934) filmada em 1961 por William Wyler com Shirley MacLaine e Audrey Hepburn com o título brasileiro Infâmia. Muito mais coerente na diegese e na forma, "Infâmia" mostra uma menina maiorzinha, pré-adolescente dizendo que viu as suas professoras se beijando, de modo a disseminar a ideia de lesbianismo - demonizado na época (e até hoje) como impeditivo na vida de duas educadoras. Havia, no filme (desconheço o texto teatral original) um final sutilmente em aberto para uma das personagens, mas orgânico com o que vinha antes. Aliás, a cena da namorada de Lucas duvidando dele parece (mal) copiada de uma cena bem intensa de “Infâmia” onde o noivo de uma das professoras acaba por se mostrar inseguro em relação à própria namorada.