Thérèse D. é extraído do romance Thérèse Desqueiroux , o mais conhecido livro de François Mauriac, escritor premiado com o Nobel. Este último filme do cineasta falecido em 2012, Claude Miller, tem sido questionado por aspectos que, entretanto, fazem parte do livro original ao qual o roteiro (do próprio Miller e de Natalie Carter, sua colaboradora em Um Segredo de Família, de 2007) é bastante fiel. Exceto pela estrutura narrativa da obra literária que começa em uma espécie de anticlímax, revelando o resultado de uma investigação policial sobre a personagem-título. Segue-se um longo flashback a partir das reflexões de Thérèse, que também servem para situar os antecedentes do que seria (talvez) o ponto mais dramático do enredo - e prosseguindo, dali em diante, com as consequências que recaem sobre ela.
Nesta versão para as telas os episódios são apresentados em ordem cronológica, mas mesmo assim o espectador pode ficar intrigado sobre as motivações de Thérèse para suas ações mais enigmáticas. No romance, a personagem e o escritor também não têm uma “explicação” clara para a trajetória apresentada. Ou seja, o que ela faz nunca é traduzido em termos de porquê ou para que e essa não-explicação chega a ser enfatizada por Mauriac. Já este filme traz uma certa ênfase interessante em um encontro de Thérèse com um jovem que havia despertado a paixão amorosa de uma grande amiga (e posteriormente cunhada) de Thérèse: é como se tal encontro fosse um fator desestruturante da farsa em que a vida dela havia se tornado dentro de um casamento de interesses comerciais. Encontrar esse rapaz culto, mais cosmopolita e livre (que, ao contrário da moça que por ele se apaixonara, nada de mais consequente pretendia daquele relacionamento) soa como um sopro de ar fresco na vida amortecida de Thérèse.
SPOILER - OS PARÁGRAFOS RESTANTES TALVEZ NÃO SEJAM DO INTERESSE DE QUEM AINDA NÃO VIU O FILME E PRETENDE FAZÊ-LO
Livro e filme frustram os que esperam um desenvolvimento romântico de tais encontros: nada de triângulo amoroso, nada de adultério, nada... As consequências serão bem mais inusitadas, mas de uma certa forma coerentes com o que a personagem é: uma moça que “pensa demais” (sic) e que parece muito pouco aberta a nexos afetivos - tanto é que, ainda em fase de noivado, diz ao pretendente que vai se casar com ele para unir as terras de sua família com as da família dele. Isso é comum naquela região e época (anos 1920, em uma França rural): casamentos são previstos quando as moças ainda são praticamente crianças, as propriedades se ampliam com tais uniões e os destinos parecem inexoravelmente traçados. É com a consciência deste mal-estar onde tudo é pré-destinado que Thérèse vai se defrontar, mas ao seu modo: friamente. Fria ao dizer o que disse para o noivo, fria sexualemente, fria em relação à filha ainda bebê. E friamente, Thérèse vai permitir que o marido se engane na dose do remédio que lhe foi prescrito; e friamente vai aumentar as doses até que ele adoeça gravemente.
Mas nem o livro nem o filme querem se deter apenas na monstruosidade do frio/indiferente aumento de doses tóxicas de remédio que a mulher vai dando ao marido, pois a história prossegue com a reação da família dele - e do pai dela - no sentido de preferirem abafar o escândalo, não permitindo que a Justiça fizesse o que deveria fazer com Thérèse. Se até mesmo o marido vai depor com relatos mentirosos para dificultar a condenação da mulher, a manutenção das aparências e hipocrisia social não serão menos monstruosas, inclusive, criando uma espécie de “prisão domiciliar” para a quase-assassina - que vai evoluir de um estado de frieza psicopática para uma aparência quase tresloucada quando surge uma exigência social (o noivado da cunhada) que vai retirá-la do isolamento ao qual foi “condenada” por uma justiça "paralela": burguesa e familiar.
A frieza de todos esses personagens, alguns tão religiosos (católicos) quanto antissemitas, de certa forma impregna (intencionalmente?) o filme, que bate nas telas com desconforto semelhante ao que se tem na leitura do romance: tudo é vago, em entretons. Os interiores, escuros - mas os exteriores não são menos claustrofóbicos; e a luminosidade só vai ser amplificada nas cenas à beira-mar quando está em cena o homem que desperta paixão em uma moça e (supomos) perplexidade, deslumbramento, desafio –mas “sem saída” - em outra. Apenas no final é que o marido terá coragem (?) de perguntar à mulher porque ela fez o que fez. Ela responde que foi pelas terras, o que ele não acredita, obviamente. Ela apenas questiona que ele sempre sabe a motivação dos seus próprios atos, deixando-nos com as mesmas questões, dele e dela: afinal, por que?
Aliás, é interessante comparar a trajetória de Thérèse com a de sua cunhada: afinal, quem torcia o pescoço de uma ave quando elas surgem ainda adolescentes no prólogo? O que a cunhada fez com sua paixão desassombrada pelo homem que a abandonou?