Quando, em 1965, aos 25 anos de idade, realizou De Punhos Cerrados , seu primeiro longa-metragem, Marco Bellocchio pareceu, a nós, brasileiros, uma versão italiana de Nelson Rodrigues ao expor uma família repleta de taras através de expressão cinematográfica contundente, fascinante e dentro da linguagem própria dos filmes mais ousados dos anos 1960.
Mas, ao contrário do nosso maior autor teatral e auto-proclamado “reacionário”, em seu filme seguinte Bellocchio, de acordo com a esquerda decepcionada com os desmandos da União Soviética e idealizando a “linha chinesa” de Mao, anunciava: A China está próxima - no mesmo 1967 em que Godard também lançou A Chinesa (e juntos, dividiriam o “Prêmio Especial do Júri” no festival de Veneza daquele ano).
Entretanto, acompanhar a carreira de Bellocchio na década seguinte transformou-se em missão praticamente impossível para cinéfilos brasileiros, a não ser que fôssemos aos festivais europeus: por falta de interesse comercial ou/e por medo da censura política que vivíamos por aqui, vários de seus filmes permanecem desconhecidos entre nós.
A chegada das fitas de VHS permitiu algum acesso ao interessante Olhos na Boca (1982)- que retomava uma trama familiar, o ator de De Punhos Cerrados, Lou Castel , e se utilizava do talento da – hoje em dia novamente famosa - Emmanuelle Riva. Também era em uma família, perplexa com a conduta estranha de um de seus membros, que se passava Enrico IV (1984), baseado em Pirandello e lançado discretamente em uma única sala carioca. Mas foi com o sucesso de escândalo de um fellatio em Diabo no Corpo (1986) que o nome de Bellocchio voltou aos cadernos culturais de nossos jornais, favorecendo a distribuição de O Processo do Desejo (1991). Consta que nessa época Bellocchio estava trabalhando seus roteiros com participação do (seu?) psicanalista, Massimo Fagioli - que de fato recebeu crédito em alguns desses filmes.
Mas outras incursões do diretor no universo de Pirandello (assim como em adaptações de Tchekov e de von Kleist) ainda são obras pouco ou jamais vistas por aqui; assim como outros filmes com temas psiquiátricos-psicanalíticos-familiares.
Só neste século XXI é que nossos festivais permitiram acesso ao que Bellocchio vem realizando: em 2002, ainda que sem lançamento comercial posterior, o interessante L'ora di religione ou Il sorriso di mia madre (em que um filho ateu, conhecedor do lado menos público e caridoso de sua mãe, enfrenta o anúncio de que ela poderia vir a ser canonizada pelo Vaticano). No ano seguinte, uma curiosa revisão do terrorismo na Itália dos anos rebeldes através de uma recriação do caso Aldo Moro em Bom Dia, Noite –posteriormente distribuído. E em 2006, Il regista di matrimoni , o menos satisfatório desses três, inédito em circuito.
Com Vincere (2009) Bellocchio voltou a interessar um tanto mais amplamente às plateias dos circuitos menos comerciais, mesclando política e vida privada ao trazer à baila a história de um filho bastardo de Benito Mussollini e o que teria acontecido ao filho e à amante do ditador fascista.
É, portanto, cabível que o lançamento de Irmãs jamais, de 2010, desperte interesse entre os que apreciaram Vincere e outras investidas originais(mesmo que nem sempre totalmente satisfatórias) do cineasta. O risco de decepção com esta realização experimental de Bellocchio, no entanto, é grande. Apesar de se voltar para um universo que sempre o interessou, o das relações familiares, como se pode constatar pelo breve resumo de sua obra mais ou menos accessível entre nós.
Filmado ao longo de nove anos com membros de sua família e com alunos de cursos que ele ofereceu na cidade onde nasceu, Bobbio, o filme resultou em seis episódios roteirizados de modo algo descompromissado (o que poderia lembrar filmes de John Cassavetes), sendo que uma certa mudança de foco entre os períodos das filmagens deixam as linhas do enredo mais esgarçadas e com altos e baixos na manutenção do interesse da plateia.
Pode ser agradável ver a filha de Bellocchio, Elena, crescer, dos 5 aos 14 anos, no papel de ‘Elena Mai’, assim como acompanhar o fiapo de alguns elementos do roteiro inventado para dar algum sentido à experiência de retomar os mesmos atores e não-atores a cada um ou dois anos vivendo os mesmos personagens. Mas, a cada retomada, os episódios sofrem de uma certa descontinuidade que parece não incomodar Bellocchio, mas pode frustrar o espectador acostumado aos temas tão diferentes - e mais “fortes” - de seus filmes mais conhecidos.
A impressão que vai se estabelecendo é de uma viagem em torno do umbigo dos familiares (reais e ficcionais) que o filme nos obriga a acompanhar ao longo de quase duas horas (110 minutos). A fotografia de imagem fortemente granulada acompanha o viés – digamos – documental do “enredo” familiar - que vai desde uma mãe que ambiciona ser atriz e deixa a filha aos cuidados de tias idosas e, eventualmente, do irmão (que a critica por abandonar a criação da filha) - até uma venda de imóvel, bem de família, com novas discordâncias entre irmão e irmã. Este “irmão” é, na vida real, Pier Giorgio Bellocchio, também filho do diretor; e sua “irmã” é a atual mulher de Bellocchio, Donatella Finocchiaro. Pode ter sido divertido para os parentes do cineasta desempenharem outros arranjos familiares ficcionais (ou nem tanto?), mas o espectador pode ficar se perguntando o que que ele tem a ver com esses filmes que, afinal de contas, lembram filmetes “caseiros” rearranjados em sequência.
Claro que era de se esperar que o filme “caseiro’ de um cineasta inventivo como Bellocchio (também autor de diversos documentários inédios entre nós) tivesse um “algo mais” que nossos filmes caseiros jamais terão; e há momentos realmente deliciosos como na fala inicial de uma das tias idosas de ‘Elena’ e ‘Giorgio’ - que emprestam sua condição de irmãs (que são mesmo, do diretor) ao título (gratuito) do filme, estabelecendo assim um duplo sentido com o sobrenome ficcional dado à “família” cinematográfica: ‘Mai’. É assim que Sorelle Mai (título original, e literalmente, ‘As Irmãs Mai’) fica como Irmãs Jamais, sugerindo um "nunca mais" à experiência, até porque diferente (mais completa) de outra edição do que haviam filmado até 2006 - e denominada apenas de Sorelle.
De fato, já estava mesmo na hora de dizer um basta para o projeto - que termina em súbita (e bela) cena de caráter mais ficcional (ou “surreal”, ou ainda oniróide, tal como no final de Bom Dia, Noite) cujo foco recai em um senhor de nome - no filme e na vida real - idêntico ao de um personagem da Divina Comédia usado em ópera curta de Puccini, Gianni Schicchi . Era tempo de “pedir o chapéu” – ou deixá-lo ao sabor dos elementos, como na imagem final.