Críticas


O GRANDE GATSBY

De: BAZ LUHRMANN
Com: LEONARDO DI CAPRIO, TOBEY MAGUIRE, CAREY MULLIGAN
05.06.2013
Por Luiz Fernando Gallego
Com tamanha incompetência e presunção, esse novo filme pode até enganar durante algum tempo, mas jamais o tempo todo.

Quando F. Scott Fitzgerald morreu em dezembro de 1940 muita gente se surpreendeu, pois nem imaginavam que ainda estivesse vivo. O ostracismo ao qual o escritor esteve relegado - até seu redescobrimento, já na década de 1950 - é dos mais impressionantes na história da literatura em confronto com o enorme sucesso obtido em boa parte dos anos 1920, sucesso que começou a lhe fugir justamente com a recepção menos entusiasmada do que viria a ser aclamado, mais tarde, como sua obra-prima e um dos maiores romances em língua inglesa do século XX, The Great Gatsby, lançado em 1925. Antes da versão atual, com o mesmo título original, o livro foi filmado logo no ano seguinte à sua publicação - e em 1949 e em ’74 - além de uma adaptação para a TV em 2000.

Mas o que talvez seja a sua melhor tradução nas telas esteja em Cidadão Kane, sem que nem mesmo Orson Welles tivesse consciência desse “parentesco”: afinal, Kane foi rodado no mesmo ano em que o escritor morreu totalmente esquecido, mas aquilo de que o livro realmente trata também está no filme de Welles - o sonho (ou pesadelo) americano sobre fama e riqueza, além da impossibilidade de apreender o passado. Charles Foster Kane morre dizendo uma palavra que remete a um tempo perdido, e Jay Gatsby vive achando que pode comprar um tempo que já passou (e uma moça que já não é mais exatamente a mesma que ele conhecera antes, mas isso ele - quase - não percebe).

Não chega a ser um equívoco absurdo o fato de que todas as recriações de O Grande Gatsby enfatizam o que é em sua superfície - e não só - o lado romântico da história e do personagem-título. Especialmente se em algum momento vemos apontado – pelo próprio grande romântico - que a mulher que ele idealiza “tem a voz repleta de... dinheiro” – frase fundamental pelo que diz e por quem a diz - estranhamente ausente da refilmagem dirigida por Baz Luhrmann, até porque repleta de trechos inteiros retirados do livro que até surgem escritos na tela sobre as imagens (como se isso fosse uma “garantia” de fidelidade).

Esse novo filme pode até enganar durante algum tempo, mas jamais o tempo todo da projeção de 142 (pesados) minutos: o equívoco do espectador seria o de considerar que a vulgaridade do – digamos – “estilo” do diretor é adequada ao nouveau richismo do personagem-título. É assim que o terço inicial, em ritmo frenético e edição de videoclipe (como no mais famoso filme de Luhrmann, Moulin Rouge - Amor em vermelho, de 2001), quase que funciona nas cenas das festas da mansão-castelo de Gatsby: tudo é exagerado e meio cafona, sim, mas também é absurdamente exagerado o modo como Jay tenta seduzir pela segunda vez sua idealizada Daisy.

Quando do lançamento no Festival de Cannes deste ano algumas críticas mencionaram um suposto descompasso entre a primeira e a segunda metade do filme, apontando que, na medida em que a história vai se desenvolvendo, a animação over e taquipsíquica das festas dá lugar a um clima mais tenso e dramático, o qual entraria em choque com o que foi visto anteriormente. A questão, no entanto, é que de fato nada muda essencialmente ao longo do filme, mantendo, apenas em outro registro, o “estilo” vulgar do cineasta; com isto, quando o tom geral muda para o que precisaria ser tenso e dramático o que surge é apenas brega e novelesco.

É verdade que mesmo os maiores entusiastas do livro original apontam que Fitzgerald utilizou recursos folhetinescos para chegar ao desfecho mais trágico pretendido, mas essa possível questão mal seria percebida em uma primeira leitura, graças à prosa extremamente elegante e à estrutura perfeita do romance na sequência de seus nove capítulos - e com o que cada um deles informa, desinforma e posterga sobre o passado dos dois personagens centrais, especialmente sobre o mistério “quem é Gatsby?”

Ao arriscar revelar verdades sobre o personagem ainda no meio da projeção, o novo roteiro - do diretor com um colaborador habitual, Craig Pearce - escancara sua tola ambição de ser “didático”, tratando o público como infantilizado e incapaz de acompanhar uma trama com lacunas intencionais que só seriam preenchidas de modo mais contundente no final para – aí, sim- ser fiel à diegese intrínseca do enredo fitzgeraldiano: pois ao deixar as revelações sobre “Gatz” em forma de quase epílogo é que a trama melodramática atinge sua grandeza trágica.

A preocupação em deixar tudo bem “explicadinho” também se evidencia na narrativa em off utilizada de modo exacerbado, além de inventar (como que para “justificar”) que o personagem Nick Carraway (Tobey Maguire), para ser o narrador dos fatos que testemunhou e veio a redigir, o fez como uma atividade “terapêutica” proposta pelo psiquiatra que o atende em internação por alcoolismo! Seria uma patética alusão à dependência de Fitzgerald em relação ao álcool e à doença mental de sua mulher, Zelda, que viveu boa parte de seus dias em asilos? Os roteiristas poderiam ter nos poupado desse acréscimo tolo e desnecessário - não por um “purismo” bobo do tipo “isso não existe o romance” - mas porque tais ceninhas são inúteis em relação ao que importa mesmo na ação (e Fitzgerald escreveu que personagem devia ser o equivalente a “ação”). Sendo recorrentes ao longo do filme, “travam” a evolução da narrativa cinematográfica que, por outro lado, se recusou a deixar para o fim as revelações sobre quem era mesmo Jay Gatsby. E a narração intrometida até oferece uma “interpretação” sobre a resposta que Daisy dá para seu choro quando Gatsby se exibe para ela jogando para o alto dezenas de suas camisas, em todas as cores possíveis.

Com tamanha incompetência e presunção, Luhrmann faz com que coincidências e acasos (que poderiam ter sido o ponto frágil da trama, mas que se transformam pela escrita hábil de Fitzgerald) apareçam na tela de modo grosseiro e mesmo lamentável em uma cena de acidente automobilístico – momento que é uma elipse no filme de 1974, mas que surge aqui repetida e trapaceando com o espectador que desconheça o enredo na tomada da direção do carro.

A construção e dramaturgia cinematográficas se mostram pífias no que seria uma cena clímax entre os quatro personagens “da elite” em um quarto de hotel, totalmente sem ritmo ou pathos. E o desastre também atinge – para surpresa de quem a admirou em outros filmes – a jovem Carey Mulligan, totalmente inexpressiva e sem a menor identificação com a personagem. Não é apenas a fala de Gatsby sobre sua voz que falta ao filme: a voz da atriz não sugere o “brilho” do ouro e sua presença se mostra apagada, jamais transmitindo a futilidade atraente e elegante com que Mia Farrow também surpreendeu - só que favoravelmente - os que a consideravam de antemão inadequada para o papel.

Descaracterizada em seus traços de levemente trapaceira e sem evidências de um namoro com Nick, a personagem de Jordan Baker mal existe na pele da novata Elizabeth Debicki; e Isla Fisher não consegue marcar sua importância, ainda que igualmente coadjuvante, como a amante de outro nível social mantida pelo marido de Daisy. (Neste mesmo papel Karen Black recebeu um Globo de Ouro no filme com Mia Farrow e Robert Redford).

Como garagista, Jason Clarke não transmite a interioridade que o ator da versão de 1974, Scott Wilson, conseguiu em suas poucas cenas; e tantos desempenhos frustrados sugerem que boa parte da responsabilidade na frustração geral cabe principalmente ao desenho dos personagens no roteiro e, principalmente, à direção de atores – que faz o marido de Daisy (Joel Edgerton) mais caricatural do que é o personagem, sempre um pouco esquemático, mas que deveria crescer nas suas últimas cenas. E isso não acontece. Apenas Leo Di Caprio parece ter algum domínio na composição geral de seu ‘Gatsby’, conseguindo transmitir um pouco menos do bom-mocismo de Robert Redford, mas a direção deixa que ele escorregue em algumas expressões faciais mais careteiras.

Não vale a pena discutir o uso do 3-D que serve aos exageros e vulgaridades iniciais, mas que se mostra supérfluo nos momentos mais íntimos. Um bom uso da sempre eficaz Rhapsody in Blue em grandes planos de NY não compensa o uso restrito de música realmente associada aos anos 1920. Não basta um exagero (que quase funciona) na recriação visual da cena em que Nick adentra pela primeira vez na casa de Daisy com enormes cortinas levantadas pelo vento: o que era uma impressão (no sentido “impressionista”) na escrita ressurge com peso “realístico” em sua tradução visual feita de exageros exteriorizados - como é todo o filme.

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Outros comentários
    466
  • Lea Reis
    12.06.2013 às 13:40

    Adoro sua resenha. O australiano é muito nouveau riche- e pretencioso. Quem disse que até de Shakespeare ele faz carnaval? So discordo em dois pontos: O gde. Gatsby, embora seja um livro de SF excelente não me parece ser o melhor nem sua obra prima. Segundo: ator medíocre, Redford acho melhor que di Caprio (ótimo ator) no papel .