A historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco escreveu, não sem uma pitada de bom humor, que “se Freud se deitasse com suas pacientes, não teria descoberto a transferência.”
No ensaio que dá título ao livro de outro psicanalista, Don Juan e suas Máscaras, de Renato Mezan, ele compara o apaixonamento de uma paciente por seu psicanalista com uma cena cômica da ópera Don Giovanni, de Mozart e Lorenzo Da Ponte. Don Juan veste as roupas de seu criado para seduzir uma empregada de Doña Elvira, uma dama que ele havia conquistado anteriormente e pela qual, agora, não tinha mais interesse (como sempre: após ser bem sucedido na sedução, ele descartava a mulher que conquistara). Por sua vez, o criado Leporello vestirá as roupas de Don Juan para entreter Elvira que, ainda apaixonada por Don Juan, como está muito escuro, é de noite, toma as vestes pelo proprietário das mesmas e acredita que o sedutor voltou a se interessar por ela. Mezan vai direto ao ponto: o terapeuta que acreditar que sua paciente está de fato apaixonada por ele mesmo não passaria de um Leporello que acreditasse que as roupas de Don Juan fizeram-no objeto de amor. Mas até o criado sabe que Doña Elvira estava apenas “transferindo” para ele o afeto que sentia, de fato, por seu patrão. Tal transferência de um afeto destinado a uma pessoa e que é “transferido” para outra poderia acontecer na clínica psicanalítica, e de modo inconsciente – não deixando de ser um equívoco da paciente sobre a pessoa do analista que, por sua vez, não deve tomar tal manifestação sobre ele como inequívoca, dirigida a ele mesmo.
Augustine, o primeiro filme de longa metragem de Alice Winocour, demonstra esse tema em uma época em que o conceito de “transferência” ainda não havia sido desenvolvido por Freud. O filme acompanha o grande médico neurologista da segunda metade do século XIX, Jean-Martin Charcot, mas antes de Freud vir a ser seu aluno em Paris - oportunidade que fez o vienense ficar impressionado pelos experimentos de Charcot com pacientes histéricas, hipnotizando-as tanto para remover sintomas histéricos como até mesmo para causá-los.
Não deixava de haver um aspecto de “freak show” nas aulas públicas que Charcot passou a dar no hospital conhecido como Salpêtrière, aulas que foram uma sensação para a sociedade parisiense de então. Mas o filme também se passa antes disso: quando Charcot dá aulas e faz demonstrações apenas para colegas e necessitado de reconhecimento para suas teses sobre o fenômeno histérico que ele vê como psicológico e jamais como “neurológico”. Ou seja, não haveria nenhuma alteração orgânica (anatômica, bioquímica, física, enfim) para a doença que é apenas funcional: o corpo das histéricas apresenta(va)m alterações que podiam ser removidas – passageiramente ou não - durante sessões de hipnotismo.
No roteiro imaginado pela diretora, Charcot precisa expor uma crise histérica a autoridades superiores para poder manter suas pesquisas. Uma jovem paciente será a escolhida para que o médico alcance seus objetivos. Trata-se de Augustine, mocinha de 19 anos que trabalhava anteriormente como doméstica e que apresenta crises extraordinárias, de breve duração, quando cai ao solo e se debate intensamente, contorcendo o tronco, braços, pernas, pescoço. Ou quando apresenta uma deformação postural em uma das mãos que se mantém por um longo período.
De fato, existiu uma Augustine internada na Salpêtrière aos 15 anos e o filme vai se basear neste dado histórico para desenvolver um enredo de ficção na qual a falha central do grande médico é a de não perceber claramente e desde sempre a interferência de seu interesse na pesquisa (leia-se: interesse na paciente estudada) para a superação ou manutenção dos fenômenos histéricos.
Não cabe detalhar aqui as idas e vindas dos sintomas de Augustine conforme ela se sinta foco de interesse (ou de desinteresse) de seu médico (que já tem a aura de “um grande professor”) por ela. Mas cabe assinalarmos que o desfecho da trama é, salvo alguma prova em contrário - mas até hoje inexistente - uma irônica invenção da roteirista para os personagens de Charcot e Augustine. De qualquer forma, o Charcot real, tal como o personagem Charcot reinventado pelo filme, não foi capaz de dar o passo gigantesco de Freud quando percebeu e descreveu o fenômeno da “transferência”. Ter essa noção bem clara pode ser a causa (como pode ter sido consequência) da preservação de conduta ética no sentido da abstinência de relação sexual entre terapeuta e paciente – falha em que incorreram alguns dos primeiros seguidores de Freud, tal como se viu na recriação do relacionamento entre Jung e Sabine Spielrein pelo filme Um Método Perigoso, de Cronenberg (2011).
Outra advertência que cabe é que, se em algum momento Augustine pode, intencional e conscientemente, imitar a si mesma tendo uma crise histérica, o fenômeno histérico propriamente não é uma simulação, não é um fingimento, não se trata de uma construção intencional das histéricas No passado mais remoto, muitas devem ter sofrido barbaridades tal como serem queimadas como bruxas, endemoniadas, possuídas por mil demônios e carentes de exorcismos cujo poder de sugestão- caso efetiva - pode “curar” - ou não, caso não haja o fator misterioso de alguma “encaixe” entre expectativas inconscientes da paciente e o procedimento “terapêutico” realizado.
O filme repete, em parte, o teatrinho show-off de Charcot, ao usar pacientes reais de hoje em dia, em roupas de época, descrevendo as vivências de suas crises, ou seja, funcionam como atrizes vivendo personagens que são como elas, pacientes. Mas conta, sobretudo com um trio de atores imbatível nos papéis centrais: Vincent Lindon como Charcot, Chiara Mastroiani como sua abonada esposa e – para nós – a revelação (após 23 filmes) como atriz da também cantora e compositora pop, Soko (cujo nome real é Stéphanie Sokolinski) no papel-título. Edição, fotografia (um destaque), trilha musical e ambientação colaboram para o resultado atraente desta primeira obra de uma cineasta em quem se deve prestar atenção.