O que são as imagens antes de se transformar em cinema? Sensações, encontros, descobertas, insistências. Potências. Forças capazes de mover alguma coisa naquele que vê. O crítico de cinema francês André Bazin, arrebatado pela força das imagens naquilo que nelas existe para ser visto, registra que a beleza do cinema está em sua capacidade em oferecer duração. Um filme, escreve ele, não se contenta mais em conservar para nós o objeto lacrado no instante, “como no âmbar o corpo intacto dos insetos de uma era extinta. Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a duração delas, como que uma múmia em mutação”. "Ontologia da Imagem Fotográfica" (de onde saiu o trecho acima) vinculou de maneira quase fatal o nome de Bazin a uma visão crítica insuflada pela essência do cristianismo – religião cujo texto, como se sabe, é atravessado por uma noção da imagem como prova, testemunhos de verdade. Contudo, se no livro sagrado dos católicos as imagens são consagradas como documentos de realidades metafísicas, no cinema elas se descobrem como “meios”, veículos para sensações e potencias escondidas nos acontecimentos.
Terrence Malick é um diretor notório por trazer para seus filmes questões relacionadas à gênese do homem, e da relação que este mantém com o mundo e sua própria existência. Mas se em Cinzas do Paraíso (1978) e Além da Linha Vermelha (1998) o homem das suas histórias é um ser que padece em angústia, porque tensionado entre deveres morais e desejos íntimos, a partir de O Novo Mundo (2005) e A Árvore da Vida (2011), o viés narrativo dos filmes do diretor se esquiva de debates de foro íntimo e se concentra na fragilidade das relações que o homem estabelece com o divino, a esfera transcendental que oferece conforto, paz e tranquilidade, e à qual se recorre quando a alma inquieta. Amor Pleno talvez seja, nesse sentido, o lugar onde as questões filosóficas que movem o diretor e o cinema se encontram de maneira mais bem resolvida.
O filme acompanha a história de três personagens “e meio”: um homem (Ben Affleck) se casa com uma mulher (Olga Kurylenko) em Paris e retorna com ela para os Estados Unidos. Eles estão felizes e tudo vai bem. Até que não. Alguma coisa falta. Eles brigam. Ela volta para Paris com a filha pequena, perde a guarda da filha, fica deprimida e tenta dar a volta por cima. Mas não. Alguma coisa falta. Ele mergulha no trabalho, retoma um caso antigo (Rachel McAdams). Ela é linda, mas ele sente saudades da esposa. Alguma coisa falta. O “meio” desta história fica na conta do vigário (Javier Barden) que atende uma paróquia na pequena Bartlesville, em Oklahoma. A um só tempo sujeito e predicado da história, " padre 'Barden' " é tanto o elo que une as histórias do triângulo amoroso acima (que podem ser lidas como confissões dos personagens, cartas para o universo), quanto a retórica que dá nome à angústia dos afetos: porque mesmo vendo Você em todos os lados não consigo senti-lo dentro de mim?, pergunta-se o padre em longas caminhadas, abençoando presidiários e escutando confissões de lazarentos. Todos os personagens estão em busca de alguma coisa. Todos também se debatem internamente na difícil tarefa de fazer casar acontecimentos com sentimentos intempestivo que assaltam a intimidade de supetão.
E porque a vida é, sempre, um ensaio que se esboça nas circunstâncias de todos os dias, o cinema também tem a obrigação de ensaiar, sempre, a melhor maneira de fazer falar as paixões que determinam as histórias. Talvez por isso Amor Pleno também possa ser considerado como o mais experimental de todos os filmes do diretor. “Estávamos fazendo tudo por conta da inspiração do Terry, de forma que ele pudesse fazer o filme depois que parássemos de filmar; ele simplesmente adora ter o material dos atores à disposição”, disse Olga Kurylenko em entrevista ao jornal britânico The Guardian. É precisamente a sensação de um filme feito a partir de uma costura de fragmentos, de imagens descobertas durante a montagem que atravessa Amor Pleno do começo ao fim. Como se, terminado o período das filmagens, Malick optasse rasgar um imaginário roteiro obediente às narrativas clássicas e apenas usasse as imagens que ficaram de fora. Elas estão menos interessadas em contar uma história que expressar um sentimento, uma duração. São imagens que denunciam um olhar apaixonado por corpos, pelo movimento entre eles, por aquilo que surge na frente da câmera, através da câmera, à medida em que o cinema vai se criando. São imagens escolhidas pela potencia que nelas existe. Claro que nada disso é mero acaso: essas sensação de “ao acaso” é produto de elaborados planos feitos em steady cam, ângulos ousados e uma montagem sem compromisso com uma narrativa linear. Se o tom intimista predomina, ele não é tanto o de uma intimidade de situações, mas aquele do cinema tentando recriar aquilo que nem mesmo nós conseguimos confessar em nossos mais angustiantes momentos. E é sempre bom que, no limite, quando se pensa que nada mais pode ser feito, podemos sempre fazer imagens.