Críticas


BLUE JASMINE

De: WOODY ALLEN
Com: CATE BLANCHETT, ALEC BALDWYN, SALLY HAWKINS
14.11.2013
Por João de Oliveira
Mistura com perfeição momentos cômicos e dramáticos no melhor estilo do diretor, que volta a usar uma personagem de mulher melodramática.

Em seu livro Manuscritos de 1844, Karl Marx, preocupado com o poder destruidor do vil metal, perguntava-se "se o dinheiro é o vínculo que nos liga à vida humana, que nos conecta à sociedade, à natureza e ao homem, se ele não seria o vínculo de todos os vínculos? Se ele não poderia desatar e atar todos os vínculos? Se, deste modo, ele não seria um meio universal de separação ?"

Esta frase de Marx, acrescida do ditado "mentira tem pernas curtas", poderia servir de epígrafe para Blue Jasmine, o novo filme de Woody Allen que narra as dificuldades existenciais, sociais e morais encontradas por Jasmine depois que as falcatruas de seu marido foram descobertas e ela viu-se repentinamente desabrigada.

A personagem vivida por Cate Blanchett é a própria incarnação do sonho americano. De criança adotada, ela passa a viver em apartamentos e casas luxuosas, organizando recepções mundanas e gastronômicas para dezenas de convidados, vestindo roupas e portando objetos de marcas, viajando de primeira classe, hospedando-se em hotéis de luxo, em casas de pessoas importantes ou velejando na Riviera Francesa. Tudo com o qual sonha a maioria da população americana, um País da Cocanha onde, reza a lenda, uma vida de sonhos e facilidades é possível para todos aqueles com alma empreendedora e espírito vencedor.

Mas o conto de fadas dura pouco. O marido, um financista inescrupuloso que vivia com o dinheiro dos outros, é denunciado ao FBI e tem todos os seus bens imediatamente confiscados pelo Estado americano. Abandonada e desamparada, vivendo à base de calmantes, antidepressivos e álcool, a personagem vê-se obrigada a recorrer à sua irmã Ginger (também adotiva), uma simples caixa de supermercado cuja pobreza, simplicidade e conformismo ela sempre desprezou (e continua desprezando) e cuja única possibilidade de uma vida melhor foi destruída justamente por ela e por seu marido escroque.

Além disso, Jasmine não gosta do namorado pobre e simples de sua irmã e tenta convencê-la de que ele é um looser e que ela merece algo melhor. Representação sutil do conflito de classes, Jasmine despreza sobretudo o que sua irmã e seu namorado simbolizam : a pobreza e a simplicidade do operariado. Isso porque, muito provavelmente, eles lhe fazem lembrar do universo de onde ela provém e no qual ela se encontra, mas do qual gostaria de sair o mais rapidamente possível.

Arrogante e egoísta, ela atravessa todo o filme sem nunca agradecer ou se desculpar com Ginger. Ignorando ou não querendo enxergar a dura realidade, ela continua a tratar as pessoas como seus serviçais, como seres inferiores e incapazes, como verdadeiros perdedores. Da mesma forma fraudulenta que seu marido administrava o dinheiro de seus clientes, ela tenta manipular a vida de sua irmã que, por pouco, não sofre uma segunda decepção em razão de seus maus conselhos.

Quando o filme - que é narrado em flash backs intermitentes- começa, o castelo de areia no qual viviam Jasmine, seu marido e o filho dele, estudante da Harvard, já desmoronou, mas ela, cujo nome verdadeiro é Janette, prefere insistir na permanência de um mundo de mentira, de um passado que já não existe mais e que a conduz à solidão, à depressão nervosa e à esquizofrenia. Assim, embora não tenha onde cair morta e dependa da ajuda da irmã, ela continua detestando a vida operária, viajando de primeira classe, utilizando malas, bolsas e carteiras Louis Vuitton com seu nome gravado e distribuindo boas gorjetas afim de manter a pose aristocrática. Como a flor que inspira o seu falso nome, ela vive inteiramente voltada para os aspectos cosméticos e materiais da vida.

A fim de corroborar essa confusão entre o presente e o passado na qual vive a personagem, os flashbacks são mostrados sem que haja um diferenciador temporal. Assim, o diretor utiliza para os dois momentos a bela luz amarelada, presente em muitos de seus filmes, produzida pelas lentes e filtros do diretor de fotografia espanhol Javier Aguirresarobe, com quem ele já trabalhara em Vicky Cristina Barcelona. Os flashbacks surgem como uma imagem mental de Jasmine e, na maioria das vezes, por uma razão determinada, por um dado qualquer do presente que remete ao passado. Inicialmente, o passado aparece como reminiscência de uma época que não existe mais, mas que ela gostaria de perpetuar, como parte da confusão mental da personagem. Num segundo momento, os flashbacks tornam-se menos frequentes e o passado surge de forma menos glamourosa, como algo de negativo que deve ser esquecido e não mais revivido. É quando, passando de manipuladora à manipulada, ela se vê obrigada a mentir uma outra vez, não com o intuito necessariamente de enganar, mas de apagar o seu passado execrável, de se reinventar. Todavia, uma vez mais a verdade emerge para desestabilizar o seu universo e, numa condenação quase moral e inexorável da instância narrativa, negar-lhe a possibilidade de reerguimento social e moral.

Se a direção é impecável, o roteiro é correto com diálogos deliciosos, eficazes e próximos de um certo realismo, embora não possua a originalidade de outros filmes do diretor: além de parecer ter sido vagamente inspirado pela historia de Madoff, o renomado operador de Wall Street para o personagem do marido (um financista desonesto e adúltero), a relação familiar e o caráter vingativo e revanchista de seu desfecho lembram vagamente o filme A Negociação, dirigido por Nicholas Jarecki. O motivo que culmina na separação do casal lembra ainda, numa espécie de processo autoderrisório, a própria vida do diretor.

Os atores, particularmente Cate Blanchett e Sally Hawkins, estão maravilhosos. A primeira está simplesmente divina. Ela conduz o filme do início ao fim e encarna o seu personagem com muita precisão e justeza, como se ele tivesse sido escrito sob encomenda para ela. Impossível, depois de ter assistido ao filme, imaginar uma outra atriz para o papel. Os figurinos que ela utiliza são bonitos, elegantes e sublinham uma forma e uma beleza pouco valorizadas em seus filmes anteriores. Ela está mais parecida com Katharine Hepburn do que no filme Aviator, de Martin Scorsese. É necessário retornarmos a 1988 e ao personagem de Gena Rowlands no filme Another Woman (A Outra) ou a 1990 e o personagem de Mia Farrow no filme Alice (Simplesmente Alice) para encontrarmos personagens femininos com a mesma intensidade dramática de Jasmine.

A utilização dos espaços e das lentes também é digna de nota. O passado aparece quase sempre em planos gerais com os personagens filmados em grandes espaços, quase sempre no exterior e com muita profundidade de campo. No presente, os espaços são mais exíguos, saturados, os planos são mais fechados com pouca ou nenhuma profundidade e majoritariamente no interior. Assim, os espaços conotam a separação de classes no seio do filme, servindo também para opor uma Nova Iorque burguesa e irreal a uma São Francisco operária e realista. Desta maneira, associados à opulência e ao passado burguês da personagem, as amplitudes espaciais só reaparecem no presente quando Jasmine encontra um novo namorado rico e a vida parece reconciliar-se com ela.

Um dos raros pontos fracos do filme concerne a construção dos personagens mais pobres, representados como muito simples, impulsivamente agressivos e excessivamente românticos que adoram, como um Homer Simpson da vida, embriagar-se diante da televisão enquanto os filhos obesos e mal-educados gritam pelos corredores. Ainda assim, essa surpreendente falta de nuances pode ser percebida como um ponto de vista de Jasmine e da classe que ela representa.

O filme, que mistura com perfeição momentos cômicos com momentos dramáticos, é uma excelente tragicomédia no melhor estilo de seu diretor. Mesmo sendo extremamente impiedoso com o mundo inescrupuloso da finança e com uma certa burguesia mundana, Blue Jasmine, que marca o reencontro de Woody Allen com seu país natal e com aqueles personagens de mulheres melodramáticas que ele tanto adora, não é nem um pouco maniqueísta. Na luta pela realização do sonho americano de uma vida luxuosa e confortável através dos ganhos fantasmagóricos acima da média prometidos pelos financistas, ninguém é totalmente inocente ou vítima quanto gostaria de fazer crer.

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Outros comentários
    935
  • dina moscovici
    15.11.2013 às 22:54

    Como não recordar o filme Elia Kazan- Um bonde chamado Desejo.- com dois magistrais interpretes: Vivien Leigh e Marlon Brandon ( um dos maiores milagres de Wollywood) ? Woody Allen traz através da brilhante interpretação de Cate Blanchctt - uma versão de Blanche Dubois, papel almejado e sonhado por todas as grandes atrizes. O sentimento judaico de um humor-trágico permeia todo o filme e Cate Blanchett- Dubois caminha nele com maestria.
  • 978
  • Antonio Carlos Gaio
    23.11.2013 às 07:30

    Não o conhecia, João de Oliveira, e achei brilhante sua análise pormenorizada - endossando Janot - sobre o filme e a inteligência de de Woody Allen, ajudando a nos compreender e alargar o conhecimento sobre a obra desse gênio, mesmo em filmes menores que "Paris à Meia-Noite", se é que se pode dizer esse absurdo, pois ele eleva a Cate Blanchet à categoria de diva do cinema. Um grande abraço, Antonio Carlos Gaio
  • 1002
  • Joao de Oliveira
    26.11.2013 às 06:48

    Caro Antonio Carlos, muitissimo obrigado pelos seus elogios que so fazem estimular um critico ainda debutante como eu. Acho que minha tarefa foi amplamente facilitada pela genialidade e inteligência de Woody Allen. Abraços agradecidos.
  • 1070
  • Vagner
    15.12.2013 às 20:31

    Woody Allen acertou mais uma vez. O filme é maravilhoso . Cate Blanchet é barbada para o Oscar.