Até mesmo nas regras frequentemente estúpidas de formatação de textos acadêmicos, há espaços bem definidos para as citações. O que seriam desses textos sem as aspas, os espaços diferenciados, as limitações de tamanho?
A compreensão do texto citado é essencial para a relevância do que se está fazendo com ele. É tão fácil citar Flaubert sem ter lido uma linha dele, que qualquer professor universitário dedica hoje maior parte de seu tempo a reconhecer o que é um Ctrl C, Ctrl V nos trabalhos que lhes são submetidos, do que nos seus comentários sobre os méritos desses textos.
Ainda que salpicado por fagulhas da nobreza viscontiana, A Grande Beleza tem cabeça, tronco e membros inspirados em Fellini. Muito particularmente em Fellini 8 e ½, filme de grandeza única, sem similar no cinema, e que, talvez por isso msmo, tem sido permanente vítima de atentados terroristas como Nine, de Rob Marshall, entre muitos outros.
Em Fellini 8 e ½, Guido (Marcello Mastroianni) é um cineasta atormentado, sem inspiração para o próximo filme de que é insistentemente cobrado. Em A Grande Beleza, Jep (Toni Servillo) é um escritor igualmente sem inspiração para um próximo livro e igualmente cobrado por isso. Jep é também o Mastroianni de um Fellini três anos anterior, Marcello Rubini, o jornalista mundano de A Doce Vida, como Jep um grande astro da alta sociedade romana. O intelectual Steiner (Alain Cuny), de A Doce Vida, também está aqui, na figura de Romano (Carlo Verdona) e do próprio Jep (que, como Steiner, é afligido pela iminência da velhice). Todos, enfim, estão ali – e os que não fazem parte do cardápio de 8 e ½ (Saraghina, etc) estão no de Amarcord principalmente, para não falar em Roma, que desvenda a herança da cidade nos túneis abertos para o Metrô, assim como essa herança é obsessivamente lembrada ao longo de metade dos diálogos de A Grande Beleza.
Nada disso teria muita importância, não fosse a pretensão formal de Sorrentino. Do padre no balanço de crianças às freiras correndo em sincronia e os largos primeiros planos de personagens improváveis, Sorrentino tenta se apropriar plano por plano do que nem lhe pertence nem está ao seu alcance fazer. Monta dezenas de bolsas Louis Vuitton da Rua da Alfândega. Acredita, aparentemente de verdade, que para fazê-las basta costurar a marca.
O que desgraçadamente se estende a todos os diálogos. Guido recorria ao Cardeal, que não tinha muito o que lhe dizer. “Padre”, dizia, “eu não sou feliz”. Ouvia do religioso algo como “e quem lhe disse que você veio ao mundo para ser feliz?”. Em A Grande Beleza, o Cardeal também não tem o que dizer – e sai desfilando receitas, como os jornais censurados na época da ditadura.
O resultado é um desastroso jogo de aparências e tolices, um filme medíocre e rasteiro que exala profundidade, um simulacro de Fellini capaz de impressionar a quem não conhece ou nunca entendeu o grande mestre do cinema. Uma cuidadosa falsificação que reduz tudo o que é misturado ali – 8 e ½, A Doce Vida, Amarcord – a um engodo desenhado para ganhar prêmios e estrelinhas e no entanto feito de elementos com os quais um cineasta que se apresenta como sério não deveria brincar.
Leia a crítica de Marcelo Janot:
https://criticos.com.br/?p=4493&cat=1