Críticas


A GRANDE BELEZA

De: PAOLO SORRENTINO
Com: TONI SERVILLO, CARLO VERDONE, SERENA GRANDI
23.12.2013
Por Nelson Hoineff
Um desastroso jogo de aparências e tolices, um filme medíocre e rasteiro que exala profundidade

Até mesmo nas regras frequentemente estúpidas de formatação de textos acadêmicos, há espaços bem definidos para as citações. O que seriam desses textos sem as aspas, os espaços diferenciados, as limitações de tamanho?

A compreensão do texto citado é essencial para a relevância do que se está fazendo com ele. É tão fácil citar Flaubert sem ter lido uma linha dele, que qualquer professor universitário dedica hoje maior parte de seu tempo a reconhecer o que é um Ctrl C, Ctrl V nos trabalhos que lhes são submetidos, do que nos seus comentários sobre os méritos desses textos.

Ainda que salpicado por fagulhas da nobreza viscontiana, A Grande Beleza tem cabeça, tronco e membros inspirados em Fellini. Muito particularmente em Fellini 8 e ½, filme de grandeza única, sem similar no cinema, e que, talvez por isso msmo, tem sido permanente vítima de atentados terroristas como Nine, de Rob Marshall, entre muitos outros.

Em Fellini 8 e ½, Guido (Marcello Mastroianni) é um cineasta atormentado, sem inspiração para o próximo filme de que é insistentemente cobrado. Em A Grande Beleza, Jep (Toni Servillo) é um escritor igualmente sem inspiração para um próximo livro e igualmente cobrado por isso. Jep é também o Mastroianni de um Fellini três anos anterior, Marcello Rubini, o jornalista mundano de A Doce Vida, como Jep um grande astro da alta sociedade romana. O intelectual Steiner (Alain Cuny), de A Doce Vida, também está aqui, na figura de Romano (Carlo Verdona) e do próprio Jep (que, como Steiner, é afligido pela iminência da velhice). Todos, enfim, estão ali – e os que não fazem parte do cardápio de 8 e ½ (Saraghina, etc) estão no de Amarcord principalmente, para não falar em Roma, que desvenda a herança da cidade nos túneis abertos para o Metrô, assim como essa herança é obsessivamente lembrada ao longo de metade dos diálogos de A Grande Beleza.

Nada disso teria muita importância, não fosse a pretensão formal de Sorrentino. Do padre no balanço de crianças às freiras correndo em sincronia e os largos primeiros planos de personagens improváveis, Sorrentino tenta se apropriar plano por plano do que nem lhe pertence nem está ao seu alcance fazer. Monta dezenas de bolsas Louis Vuitton da Rua da Alfândega. Acredita, aparentemente de verdade, que para fazê-las basta costurar a marca.

O que desgraçadamente se estende a todos os diálogos. Guido recorria ao Cardeal, que não tinha muito o que lhe dizer. “Padre”, dizia, “eu não sou feliz”. Ouvia do religioso algo como “e quem lhe disse que você veio ao mundo para ser feliz?”. Em A Grande Beleza, o Cardeal também não tem o que dizer – e sai desfilando receitas, como os jornais censurados na época da ditadura.

O resultado é um desastroso jogo de aparências e tolices, um filme medíocre e rasteiro que exala profundidade, um simulacro de Fellini capaz de impressionar a quem não conhece ou nunca entendeu o grande mestre do cinema. Uma cuidadosa falsificação que reduz tudo o que é misturado ali – 8 e ½, A Doce Vida, Amarcord – a um engodo desenhado para ganhar prêmios e estrelinhas e no entanto feito de elementos com os quais um cineasta que se apresenta como sério não deveria brincar.



Leia a crítica de Marcelo Janot:

https://criticos.com.br/?p=4493&cat=1

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Outros comentários
    1189
  • Antonio Sampaio Dória
    20.01.2014 às 15:43

    Interessante a observação final, 'um cineasta sério não deveria brincar.' Será? Tão sério deve ser o cinema que o prazer da brincadeira lhe é proibido? Pois se o simulacro pode ser desvalorizado por não ter a aura do original, o que seria da arte moderna sem a paródia e a citação? As razões para desmerecer o filme não podem ser estas. Em outras palavras: mesmo com citações, o filme só pode ser analisado por si mesmo.
  • 1199
  • Renata
    26.01.2014 às 20:06

    Concordo cem por cento com a crítica. Fico aliviada em encontrar alguém que, assim como eu, não achou este "o melhor filme da década"(sim, ouvi isso).
  • 1200
  • GêCesar
    27.01.2014 às 15:19

    Prezado Nelson Hoineff, eu quero crer que você. é, de fato, um admirador do cinema e que conhece a essência da alma felliniana, e que, ainda, é capaz de conseguir se desvencilhar do saudosismo dos grandes mestres do cinema a ponto de perceber as novas boas da cinematografia atual. Mas esta sua crítica vigorosa e virulentamente contundente, eu só posso compreendê-la como resultado de um mau dia da sua capacidade de percepção. Acontece. Há dias em que nada nos parece satisfatório. Dias em que as nossas retinas não captam nenhuma grande beleza, ainda que ela se deleite à nossa frente. Espere por um bom dia e, então, reveja "A Grande Beleza". Verás, se se permitir, que não se está diante de Fellini, mas olhando para um novo diretor que - declaradamente - pede permissão ao mestre para apresentar a sua subjetividade sobre fauna de Roma, cenário escolhido para os eternos conflitos da espécie humana. Não sei se assistiu "Cópia Fiel" do Kiarostami ( escrevi sobre o filme, se me permite, em http://oemporiodocesar.blogspot.com.br/2011/07/copia-fiel.html ). Acho que o cineasta iraniano toca nesta questão da cópia ou simulacro que talvez seja um importante ponto de partida para pensarmos esse tema, discutido desde os filósofos gregos, mas ainda assim, a questão da cópia que você coloca desviou o seu olhar e passa a ser apenas uma pedra que o fez tropeçar. O personagem central do filme via o Coliseu da sua sacada. Você viu o filme do subsolo, mas imaginou tê-lo visto do céu.
  • 1205
  • Thomaz
    31.01.2014 às 15:17

    Que bobagem hoineff. O filme é uma homenagem clara ao mestre Fellini. Se assim não fosse, porque as citações tão descaradamente vivisíveis? Para correr o risco de ter críticos abertamente desavisados a correrem para espinafra-lo? O filme é genial. Vá ver de novo. E tome um Epocler antes!
  • 1212
  • Nino
    06.02.2014 às 12:50

    O filme é chato, banal e mal dirigido. Contém personagens escroques, sem que os mesmos ao menos nos revelem perversões dignas do interesse ou do interesse e da curiosidade humana. A crítica especializada tem uma simpatia conceitual pela produção e nos induz (nós público) a este esforço inexequível. Afinal perdemos a noção do que é bom, e do que não é bom.
  • 1213
  • Nino
    06.02.2014 às 12:59

    Obs.: Pseudas homenagens a Fellini, via quadros isolados caricaturais , a mim me soaram mais como cópias mal feitas, uma ofensa. Afinal o medíocre não pode glorificar o genial.
  • 1240
  • MARIE
    27.02.2014 às 14:35

    Olha, não sei o que tu entendes de cinema, mas francamente, tem que ser um boçal do ponto de vista humano para desprezar um filme tão rico e intenso em tantos espectros de humanidade. Dr. Nelson, tu preferes o quê? Blockbusters, tipo robocop? Ou BBB e a fazenda mesmo? Se uma obra prima como "A grande beleza" não ganhar como melhor filme estrangeiro, podem tocar fogo em hollywood, que pra mim o cinema acabou!
  • 1259
  • Lúcrécio.
    27.03.2014 às 18:38

    Mimimi... A excelência como ferramenta para desvalorizar. Ora, no bom e safado estilo Ctrl c Ctrl v: "laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même". Qui, qui, qui!
  • 1267
  • SSMartinelli
    11.04.2014 às 10:45

    Crítica rica de filme pedinte!!!