Com título mais provocativo (“Tal pai, tal filho”), o mais recente filme de Hirokazu Kore-Eda recebeu o Prêmio do Júri presidido por Steve Spielberg no Festival de Cannes de 2013. Consta que Spielberg pretende uma versão do mesmo enredo transposto para cenário americano. Geralmente essas refilmagens não funcionam bem, embora o ponto de partida possa ser universal: um casal descobre que o menino que criam não é de fato seu filho biológico, tendo sido trocado na maternidade. Mas o tema maior que parece apaixonar Kore-Eda em Pais e Filhos é a discussão do lugar que terão em nossas vidas o acaso e/ou o planejamento.
‘Ryota’, um arquiteto com cargo executivo em uma grande empresa e workalholic, é o personagem sobre o qual o foco é mais intenso. Ele planeja o futuro do pequeno Keita com premissas rígidas, ambiciosas e exigentes. No decorrer do filme ficamos sabendo que ele e um irmão foram criados pelo pai com quem Ryota não se dá muito bem e por uma madrasta, sem que saibamos ao certo o que houve com a mãe. Ele é um típico narcisista que acredita que se fez sozinho; portanto, seu filho pode reproduzir o mesmo (ou maior) sucesso que ele alcançou desde que seja cuidadosamente orientado para vencer em uma sociedade competitiva.
O enredo vai caracterizando - aos poucos e com sutileza - os demais personagens, tal como o outro casal que teve seu bebê trocado, uma dupla bem mais simples em seu modo de vida. Também podemos perceber algumas diferenças no comportamento das duas esposas: a de Ryota surge mais submissa às diretrizes e metas do marido, enquanto a outra questiona o companheiro (por exemplo, quando este se desculpa pelos atrasos do casal, atribuindo-os a ela; além de outras passagens que evitamos revelar neste texto). Já a diferença de status econômico entre as duas famílias é mais evidente por si só.
Com sua habitual narrativa pausada, mas sem incorrer em excessos de lentificação no ritmo, cabendo assinalar que há tempos é o diretor quem edita seus filmes, Kore-Eda vai desenvolvendo sua história com muita delicadeza e sensibilidade, evitando habilmente o risco de derrapar em melodrama lacrimoso.
É marcante a presença de elencos infantis em seus filmes (Ninguém pode saber, 2004, e O que eu mais desejo, 2011), e aqui também a participação dos pequenos atores é fundamental para o resultado alcançado, sendo que Masaharu Fukuyama também se destaca no papel de Ryota, sem demérito para os demais atores adultos. Uma famosa gravação de pequenos trechos das Variações Goldberg, de Bach, por Glenn Gould serve muito bem como música incidental pontuando certas passagens do filme.
Ao lado de Still walking (exibido no Rio apenas no Festival de 2008) e de Depois da Vida (1998), Pais e Filhos é outro grande filme do cineasta.
ATENÇÃO PARA SPOILERS NO TRECHO ABAIXO REVELANDO ELEMENTOS DO ENREDO QUE NÃO DEVEM INTERESSAR A QUEM AINDA NÃO ASSISTIU O FILME.
A inserção de um elemento aparentemente estranho à trama central do roteiro (o fato da troca dos bebês ter sido provocada intencionalmente por uma enfermeira da maternidade) serve, entretanto, à demonstração de que não se deve pretender ser o deus dos destinos, próprios ou alheios. O que a enfermeira fez por motivações pessoais extremamente neuróticas surge como ênfase analógica às pretensões de Ryota quanto ao rígido controle na idealização do futuro planejado para o filho - que vai descobrir não ser seu filho biológico. Uma frase (“Agora está explicado”) deste personagem, logo que informado da hipótese da troca, vai ser lembrada por sua esposa já perto do final, denunciando que ele se ressentia do suposto filho não corresponder integralmente às suas ambições e expectativas.
A existência da personagem da enfermeira e sua conduta intencional - questão periférica ao problema central que é o fato em si de que houve uma troca de filhos biológicos - parece querer afastar que a troca de bebês seja, neste roteiro, um mero produto do acaso (por exemplo, por descuido). Este e outros elementos da história criada pelo cineasta servirão para demonstrar (mais do que a evidente questão de se privilegiar laços de sangue ou laços afetivos) que nem só o acaso - e muito menos a pretensão onipotente de controlar os destinos - podem definir, isolada e obrigatoriamente, quem somos e em quem nos tornamos.
Em outra obra de sua já bem premiada carreira, Kore-Eda destacou a importância de pequenos momentos de nossas existências no "frankcapriano" Depois da Vida (1998); e no mais recente O que eu mais desejo ele abordou o pensamento mágico e wishful thinking infantis que, persistindo na vida adulta, transformam-se em ilusórias fantasias de onipotência e controle absoluto sobre nossas vidas. Não é de modo óbvio que esses temas se repetem em vários e significativos detalhes do enredo de Pais e Filhos.