Gloria, o filme, tem o nome da personagem central que, por sua vez, parece ter sido assim batizada para a trilha sonora utilizar uma música animada chamada... Gloria. Dirigido por Sebastián Lelio, aborda o dia-a-dia de uma mulher independente de 58 anos, divorciada, que trabalha e vive a meia-quase-terceira-idade sem se submeter ao estereótipo de avó retirada e conformada ao modelo "idosa".
Em alguns aspectos esta realização chilena pode se aproximar daquelas produções argentinas que retratam personagens de classe média e suas tragicomédias burguesas: Gloria frequenta encontros dançantes em happy hour, bebe direitinho (muito eventualmente pode até fumar um), mostra-se disponível para ser paquerada e até mesmo ter eventuais relações sexuais.
Diferentemente da maioria das realizações portenhas que edulcoram pequenos dramas predominantemente burgueses um tanto isolados de um contexto social de fundo, o passado negro ditatorial que ainda pode ensombrecer o Chile de hoje é sugerido pontualmente aqui e ali: como em uma conversa entre amigos de Gloria (ela, calada) ou em uma passeata vista no segundo plano de uma cena; e principalmente, no relacionamento com o sessentão Rodolfo, um divorciado de perfil diametralmente oposto ao dela porque submisso a frequentes solicitações da ex-mulher e das filhas adultas que não se sustentam. E que também é antigo oficial de Marinha. Portanto - podemos deduzir - ele poderia ter estado na ativa durante o período Pinochet – e com mais, menos (ou nenhum?) comprometimento – ainda que isto seja apenas uma hipótese plantada na mente do espectador e não mais do que uma discreta alusão do roteiro.
Só que é em detalhes como este, nem tão pequenos, que encontramos os problemas do filme, razoavelmente bem embalado e bem editado (pelo próprio diretor), mas mal resolvido no seu desenvolvimento, especialmente no terço final que é consequência de fragilidades anteriores, indecisões e problematizações encaminhadas de modo hesitante.
Produzido por Pablo Larraín, autor de filmes mais ostensivamente “políticos” - como “No” e “Post Mortem” – em Gloria o cineasta e roteirista Lelio mostra-se dividido o tempo todo: limitar-se a uma abordagem - digamos - à argentina (conforme mencionado)? Ou estabelecer metáforas pouco sutis, ainda que econômicas, sobre o que pode ser o Chile atual em sequência ao que foi vivido na ditadura militar e com repercussões ainda contemporâneas (especialmente para os que preferem esquecer)?
Neste aspecto, a construção da personagem principal acaba sendo ainda mais frágil do parece ter sido pensado pelos realizadores. Ela sofre com a permanente invasão de seu “espaço” pelo gato do vizinho de cima e pelos escândalos do drogado que dificultam as noites de sono de uma sensata Gloria diurna, ainda que nem sempre tão “comportada” à noite.
Mas a principal “invasão” de aspectos indesejados em sua vida atual e cotidiana vai se manifestar no aprisionamento de Rodolfo ao seu passado: explicitamente, sabemos que o que perturba a relação com Gloria é o passado conjugal ainda presentificado, uma boa (mas algo frustrada) tentativa de falar do que já seria passado - mas não completamente extinto - sem menção óbvia ao que incomodaria a vida mais prosaica do pequeno mundo de Gloria e de um país que quer seguir em frente, talvez sem olhar muito para trás. Ela parece desejar apenas "ir adiante", mesmo sujeita a decepções (repetidas, ainda que previsíveis) e a uma ou outra noite destrambelhada que pode acabar na bagaceira.
O arco da personagem acena com a bandeira da liberdade para a mulher que já não é jovem - mas também não está envelhecida e cheia de limitações -, o que deve garantir o sucesso do filme junto às contemporâneas cinéfilas; mas a aparente necessidade do roteiro no sentido de contemplar algo além da “vida comum” não se encaixa a contento, chegando de modo mais insatisfatório ao terço final e à última cena do tipo “agora eu não sei mais como terminar o filme: solta uma música animada e abram suas asas”. Não é de graça que a trilha sonora incluiu o “Lança Perfume”, de Rita Lee. (Em outro momento, escutamos na íntegra “Águas de Março” com personagens secundários reproduzindo o arranjo e fraseado da conhecida gravação de Tom com Elis).
Premiada em Berlim, Paulina Garcia, dá vida à personagem e se mostra destemida ao exibir o corpo e participar de cenas de sexo ao lado do também ótimo Sergio Hernández como Rodolfo. Soa exagerada e caricatural a tentativa de construir fisicamente a personagem com uma armação de óculos em formato de tela de TV antiga, tão grande e pouco usada atualmente por aqui, acabando por lembrar incomodamente o Dustin Hoffman de “Tootsie”.