Mesmo sem ter perfil de contestador nem fazer alvoroço na mídia, Murilo Salles tem conseguido sacudir o status quo do cinema brasileiro com seus melhores filmes. Em meados da década de 1980, Nunca Fomos Tão Felizes trocou as reações ressentidas – àquela altura, inócuas – com a ditadura militar pelo caminho da reflexão sobre o vácuo deixado para as gerações futuras. Como numa seqüência daquele raciocínio, as crianças de Como Nascem os Anjos não agiam movidas por uma pauta sociológica engomada, mas por impulsos naturais do seu modo de vida: o acaso, o equívoco, o narcisismo, a sexualidade precoce, a mitificação da beleza importada, o mimetismo da televisão. Um filme como outro espanavam velhas armaduras dramatúrgicas e abriam espaço para as incompletudes e ambigüidades da vida moderna.
Operação semelhante faz Seja o que Deus Quiser!, uma comédia social que vem sendo amada por uns e odiada por outros desde que chamuscou a tela pela primeira vez, no Festival do Rio BR de 2002. Nela, Murilo Salles inverte uma série de sinais e tira um sarro dos preconceitos de imagem, de raça, de estamento social etc, construídos no dia-a-dia violento das grandes cidades brasileiras. Na história do músico negro falsamente seqüestrado por dois adolescentes brancos da hype paulista, por trás de cada ironia está a perspectiva de uma classe média aterrorizada e ao mesmo tempo atraída pelo objeto do seu terror. Uma ambivalência bem típica desses tempos em que a mídia, a academia e as tribos antenadas flertam com o charme da marginalidade e, através dela, tentam chegar a uma espécie de conhecimento transcendente, que não dispensa o elemento erótico.
Não se trata mais da conclamação “Seja marginal, seja herói”, vigente nos anos 1960 e 1970. Não se exige a ruptura, mas se deseja a proximidade imaginada, mediada pelos computadores, a provisoriedade das festas ou os limites dos códigos do encontro urbano. Estar perto do excluído, do maldito ou do ameaçador, sem necessariamente trocar de lugar nem sucumbir ao perigo. Penetrar na periferia com camisinha.
Numa cena do filme, Nando aponta um revólver de água para uma motorista e a respeitável senhora reage com um tiro de verdade. Mais que uma gag bem sucedida, isso é um comentário ousado sobre os clichês da vítima e do algoz, que Salles desmonta sem piedade. Seja o que Deus Quiser! não compactua com o estabelecido no discurso da violência. Nem se aproxima do niilismo social de um Sérgio Bianchi. Sua arma é o humor desestabilizador, primo-irmão da charge, que sublinha certos traços da figura para enfatizar suas qualidades absurdas.
O diretor trabalha com grande liberdade de enquadramento e edição, aludindo, também no estilo, ao universo gráfico e emocional da juventude ligada no hip hop e na grande rede. Nessa procura de uma expressão adequada e de uma visão crítica dos costumes, Murilo Salles se renova e expõe-se ao risco da experimentação. Nem todos estão recebendo sua mensagem com o programa apropriado. O que é uma pena, porque o conteúdo é ótimo.
# SEJA O QUE DEUS QUISER!
Brasil, 2002
Direção: MURILO SALLES
Roteiro: MURILO SALLES, com colaboração de JOÃO EMMANUEL CARNEIRO e MAURÍCIO LISSOVSKY
Fotografia: GUSTAVO HADBA
Montagem: PEDRO AMORIM
Música: INSTITUTO, com participação de FERNANDINHO BEATBOX
Direção e produção de arte: DÁRIDA RODRIGUES e MÔNICA COSTA
Conceituação da direção de arte: JAIR DE SOUZA e PEDRO PAULO DE SOUZA
Elenco: MARÍLIA PÊRA, ROCCO PITANGA, LUDMILA ROSA, CAIO JUNQUEIRA, DÉBORA LAMM
Duração: 90 minutos