Quando passou no Festival do Rio, Osama recebeu mais atenção por ser o primeiro filme legitimamente afegão a ser rodado no país depois da queda do regime talibã. A prerrogativa histórica, porém, não é a maior qualidade do trabalho de Siddiq Barmak. Osama, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, é expressivo e tecnicamente bem resolvido, a ponto de sugerir não uma filmografia renascida das ruínas, mas um cinema próximo da maturidade.
O Afeganistão pós-talibã havia sido retratado em dois filmes da família iraniana Makhmalbaf: A Caminho de Kandahar, de papai Mohsen, e Às Cinco da Tarde, da filha Samira. A produtora dos Makhmalbaf ajudou Siddiq Barmak a viabilizar seu filme, mas a diferença de uma criação autóctone se impõe desde as primeiras cenas. Não há exploração da tragédia nem estetização visual. Barmak tampouco se aproveitou da dramaticidade exacerbada ou da fotogenia maldita da guerra. Osama se passa em plena vigência do inferno talibã, quando o mundo ainda nem ousava imaginar um 11 de setembro.
A guerra, então, se dava no cotidiano do povo afegão. Manifestações eram dissolvidas com violência, sessões de punição pública se multiplicavam como na Idade Média, festas de casamento disfarçavam-se de funerais para escapar à estrita vigilância, esposas eram agrilhoadas como bichos em casa pelos maridos, sonhos eróticos tinham de ser exorcizados mediante demoradas abluções ritualísticas. Esse panorama vai sendo descortinado enquanto seguimos o rumo de uma menina a quem a mãe disfarça de garoto para poder conseguir emprego e ajudar no sustento da família. Rebatizada como Osama, ela freqüenta uma escola de meninos, faz pequenos serviços e tem de passar por duras provas até que a natureza se encarregue de redirecionar o seu destino.
A vida sob o jugo talibã ainda não tinha aparecido com tanta nitidez no cinema: as atividades clandestinas, as relações de poder e privilégio, a idolatria de Osama bin Laden... Barmak consegue pintar esse quadro sem nunca perder de vista o núcleo afetivo de sua história central. E para isso, o olhar profundo da pequena Marina Golbahari tem importância fundamental. O diretor a conheceu como uma pedinte na rua, o que explica a primeira cena do filme. Como Marina, todo o elenco é composto por atores não profissionais, que Barmak reuniu logo depois de voltar do exílio no Paquistão. Com ele, foi o cinema que retornou a Kabul. Osama é uma conjuração do passado que se faz necessária para reinventar um novo presente e um possível futuro.
# OSAMA (Osama)
Afeganistão/Japão/Irlanda, 2003
Direção e roteiro: SIDDIQ BARMAK
Elenco: MARINA GOLBAHARI, ARIF HERATI, ZUBAIDA SAHAR
Duração: 82 minutos