A diversidade e o vigor do novo cinema produzido na China/Hong Kong/Taiwan se traduz em obras tão distintas quanto os filmes existencialistas dos incensados Tsai Ming-Liang e Wong Kar-Wai e pequenas jóias neo-realistas como Bicicletas de Pequim, de Wang Xiaoshuai, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim de 2001 e só agora (mal) lançado no Brasil. Bicicletas de Pequim traça um retrato singelo de como a abertura econômica afeta o cotidiano dos jovens chineses.
De um lado, está Guei, um dos milhares de imigrantes das áreas rurais que vêm tentar a sorte em Pequim. Do outro, Jiang, estudante que vê nos sonhos de consumo capitalistas o passaporte para conquistar garotas e o respeito dos colegas. Em comum, Guei e Jiang têm o fato de serem muito pobres. O primeiro representa a inocência da China comunista perante um novo mundo que se abre à sua frente. Consegue um emprego de mensageiro, e é com o fruto de seu esforço que conseguirá comprar a bicicleta que lhe serve de instrumento de trabalho. O segundo é a China já sob o bombardeio dos valores capitalistas. Jiang mora com os pais e a irmã num barraco modesto. Não se conforma com o fato de o pai não ter lhe dado a bicicleta que prometeu pelo seu bom desempenho nos estudos. E se sente inferiorizado frente aos amigos da escola, que têm como passatempo predileto praticar manobras de bicicross e gastar dinheiro em fliperamas.
Certo dia, ao retornar de uma entrega, Guei descobre que sua bicicleta, seu único bem, fruto de tanto esforço, foi roubada. É demitido e só será aceito de novo no emprego caso recupere a bicicleta. Sem se dar conta do que representa procurar uma bicicleta numa cidade como Pequim, ele inicia sua busca, até esbarrar em Jiang, o ladrão, que a essa altura desfila orgulhoso seu brinquedinho novo.
Não bastasse a eficiência na condução da trama, que permanece crível e envolvente mesmo na hora em que situações que beiram o absurdo tomam conta dela, Xiaoshuai consegue estabelecer um interessantíssimo desenho psicológico de seus personagens principais. Guei é o matuto do interior, assustado, cheio de temor e respeito pelo desconhecido. Poderia muito bem cair no estereótipo do caipira deslumbrado com a cidade grande. Mas essa armadilha é evitada. Em uma das melhores cenas do filme, ele vai fazer uma entrega numa casa de banhos freqüentada pela burguesia chinesa. Confundido com cliente, toma banho, veste o roupão, mas em nenhum momento tem consciência de que está usufruindo de um privilégio de poucos, e não demonstra nenhum prazer especial nisso – em sua ingenuidade, ele acha que faz parte do ritual de entrega e busca de correspondência naquele lugar.
Por outro lado, vale a pena reparar na lógica do raciocínio de Jiang e sua relação com o mundo. Ele não demonstra nenhum tipo de culpa ou arrependimento pela forma ilícita como adquiriu sua bicicleta ou por ter roubado o dinheiro do pai para jogar fliperama. É como se tudo se justificasse pelo cumprimento da promessa paterna de lhe dar o bem de consumo tão sonhado. Além disso, é curioso observar como ele associa o interesse da moça por ele exclusivamente à posse da bicicleta, assim como o comportamento e o distorcido senso de justiça de seus amigos, incapazes de aceitar que a palavra de um matuto do interior possa valer mais do que a dele, mesmo contra todas as evidências que se apresentam.
Por fim, Xiaoshuai pontua a narrativa com pequenas e precisas observações dessa China em transição, como a personagem da mulher misteriosa que Guei e seu amigo observam à distância, e, em especial, a quantidade de atropelamentos que acontecem no filme, metáfora das mudanças que chegam de forma avassaladora ao país, sem poupar quem esteja no caminho.
# BICICLETAS DE PEQUIM (SHIQI SUI DE DAN CHE – BEIJING BYCICLE)
China/Taiwan, 2001
Direção: WANG XIAOSHUAI
Roteiro: WANG XIAOSHUAI, PEGGY CHIAO, HSU HSIAO-MING, TANG DANIAN
Produção: PEGGY CHIAO, HSU HSIAO-MING, HAN SANPING
Fotografia: LIU JIE
Montagem: HSIAO JU-KUAN
Música: WANG FENG
Elenco: CUI LIN, LI BIN, ZHOU XUN, GAO YUANYUAN
Duração: 113 min.
site: www.sonyclassics.com/beijing