Críticas


O PASSADO

De: ASGHAR FARHADI
Com: BÉRÉNICE BEJO, TAHAR RAHIM, ALI MOSSAFA, PAULINE BURLET
09.05.2014
Por João de Oliveira
Os problemas da incomunicabilidade retratados com brilhantismo e sobriedade

Depois de seu super premiado e aclamado A Separação, o diretor iraniano Asghar Farhadi escolheu a França para dirigir seu primeiro filme rodado fora de seu país. Em O Passado, ele mergulha uma outra vez, com o brilhantismo e a sobriedade que lhe são peculiares, nos dramas e conflitos de uma família de classe média, desta vez da periferia parisiense (mas que poderia ser da periferia de Teerã ou de qualquer outra cidade). Desde os primeiros planos do filme, vemos um casal que, separado por um vidro, tenta, com dificuldades, manter uma comunicação o que, de maneira geral, resume não apenas a relação entre os dois, mas também aquela existente entre todos os personagens (que parecem ignorar as regras de uma comunicação direta, sem intermediários) durante todo o filme.

Ele, Ahmad, acabou de chegar do Irã para assinar o divórcio com sua ex-mulher, Marie (Bérénice Bejo, linda, parecendo uma iraniana), que foi buscá-lo no aeroporto. A serenidade dele contrasta com a agitação e inquietude da mulher. A simbologia da volta atrás, do passado como algo perigoso surge logo no começo. Ao dar uma marcha à ré, Marie, cuja vida é totalmente afetada pelo passado dos outros, provoca um pequeno acidente. A dificuldade de comunicação continua no trajeto rumo à casa. Ahmad descobre que o seu hotel não foi reservado e, fortuitamente (informação obtida indiretamente), que sua ex-mulher, que ele não via há quatro anos, tem um outro homem sem que ele tivesse sido comunicado.

A assinatura do divórcio não é a única peripécia do filme. Como nos indica o título e um plano durante os créditos em que o para-brisa tenta apagar o nome do filme, a sua premissa dramática é a tentativa de compreensão e esclarecimento do passado. Ahmad deve conversar com a adolescente Lucie, sua ex-enteada, para tentar entender por que a relação dela com sua mãe se deteriorou e por que ela não gosta de seu futuro padrasto que, no entanto, parece um homem gentil e cordial. Ahmad é solicitado para tentar ajudar a rearrumar uma casa em desordem (como em duas cenas simbólicas logo no início do filme : na primeira ele tenta resolver uma crise de nervos do enteado de Marie e na segunda ele aparece desentupindo a pia da cozinha) e preservar a família em aparente decomposição. Esse diálogo do ex-padrasto com a ex-enteada permite um mergulho no passado das relações entre os diversos personagens do filme e abre uma série de surpreendentes peripécias, uma verdadeira caixa de Pandora de mentiras e silêncios a partir dos quais tenta-se superar os erros e os fantasmas do passado que, corolários da falta de comunicação e de diálogo direto, criam empecilhos à harmonia da família ou à simples convivência profissional.

Ahmad é um personagem misterioso. Nada sabemos sobre ele, nem sobre as razões que o levaram a se separar de Marie. Ele tem um lado solar, na medida em que é ele quem catalisa os conflitos e as inverdades dos outros personagens, e um outro sombrio, a partir do momento em que é ele quem revela e divide o segredo dos outros, despertando os fantasmas adormecidos e entorpecidos pelo silêncio, pelo estado de ignorância e de não saber que criava uma ilusória sensação de harmonia. Essa tomada de consciência dos erros do passado sendo problemática, o filme parece se perguntar sobre a real necessidade de desvendá-los. A um tal ponto que quando Ahmad, transformado pela revelação dos segredos dos outros, decide revelar à sua ex-mulher as razões que o levaram a se separar, ela o impede de fazê-lo, dizendo não querer olhar mais para trás, e ainda exige que ele parta (ela prefere viver no conforto da ignorância). A despeito dele, sua presença, e a emergência de um passado que ela provoca, semeia a discórdia no seio da família conduzindo seus membros a um retorno forçado ao passado que os impede, como a casa onde vivem (em desordem e em reformas), de se reconstruírem, de avançarem enquanto não resolverem seus passados respectivos. Como os móveis cobertos da casa, os seres que a ocupam aparecem também cobertos por uma névoa densa de mistérios e segredos.

Ahmad deve partir porque a sua presença, em razão das confissões e verdades que ele obtém como mediador, obriga a família a romper com a farsa de um silêncio supostamente harmonizador e a encarar os problemas de frente através da possibilidade de um diálogo direto, não mais mediado (sem o vidro/parede proteção do início do filme, sem o intermediário Ahmad), o que ela parecia recusar. E a recusa da mãe à tentativa de confissão do ex-marido é uma prova cabal da negação dessa possibilidade de comunicação direta, sincrônica. Ela parece privilegiar a comunicação mediata, a narração indireta, redutora da dimensão emocional e seguramente mais protetora. Ahmad deve partir também porque a verbalização dos não ditos provocada por sua intermediação não suscita a aproximação desejada, mas, ao contrário, engendra a distância, ao fazer emergir a realidade.

O Passado não difere muito dos outros filmes do cineasta, na medida em que ele aborda problemas recorrentes na obra do autor como o ciúme, os conflitos familiares e as relações pais/filhos. Paradoxo interessante e enriquecedor da obra do cineasta (presente também em A Separação), ao mesmo tempo em que o filme dá a impressão de não tomar nenhum partido, a instância narrativa deixa a impressão, na totalidade da obra, de condenação moral.

À pergunta sobre a possibilidade de viver o presente sem pensar no passado que é colocada pela intriga, que dá a impressão de valorizar os silêncios do passado como preservação do presente e garantia do futuro, à medida em que as revelações do presente provocam distúrbios no seio da família, ameaçando a sua perenidade, o filme responde de maneira clara em seu último plano, o qual sugere a necessidade de encarar e resolver os problemas do passado, antes de pensar na construção do futuro. Como no caso de seus filmes iranianos, a trilha sonora de O Passado resume-se quase inteiramente aos barulhos ligados ao cotidiano das pessoas e das cidades. Além do excelente trabalho dos três atores principais, da bela fotografia de seu compatriota Mahmoud Kalari, fotógrafo de A Separação, vale destacar a atuação maravilhosa do menino Elyes Aguis, que interpreta Fouad. Um novo talento talvez tenha nascido.

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Outros comentários
    1459
  • claudia M de Oliveira
    11.05.2014 às 21:23

    Adorei o texto, mto bom.
  • 1491
  • Joao de Oliveira
    16.05.2014 às 01:21

    Claudia, Que bom que você gostou. Muito obrigado. Abraços, João
  • 1517
  • Marcos Florião
    21.05.2014 às 06:21

    Valeu João ! Excelentes escritos, também adoro o filme.
  • 1521
  • Joao de Oliveira
    21.05.2014 às 08:35

    Obrigado, caro Marcos. Um forte abraço.