
A filosofia costuma opor a intolerância e o preconceito, sobretudo quando endogênicos, ao logos e ao ratio, enquanto a sociologia e a antropologia invariavelmente associam-lhes à pobreza social, educacional e cultural dos indivíduos ou ainda às epifenomenais dificuldades sociais e econômicas vividas por alguns países. O recente crescimento dos movimentos extremistas em alguns países da Europa mais desenvolvida ou o conservadorismo comportamental demonstrado por uma parte da elite econômica francesa (com uma pequena participação de uma certa elite intelectual) rompe um pouco com esse mito.
E o filme francês "Eu, mamãe e os meninos" é o exemplo tipico de intolerância no seio de uma classe social supostamente esclarecida, na qual os problemas deveriam ser debatidos e discutidos de maneira dialética e com o suposto respeito da alteridade. O primeiro filme do ator da Comédie Française, Guillaume Galliene, adaptation de seu one man show, é uma divertida comédia autobiográfica que narra a busca da identidade sexual de um jovem de classe média parisiense em meio a intolerância homofóbica de sua aristocrática família.
Procurando distinguir-se de seus dois irmãos e ao mesmo tempo atrair a atenção de sua mãe, Guillaume, ainda na adolescência, mergulha em uma espécie de esquizofrenia inventando-se uma identidade feminina toda calcada na personalidade dominadora de sua mãe, que adoraria que ele tivesse nascido mulher. O mimetismo é tal que ele chega a confundir alguns membros da família. Para facilitar a visualização do mimetismo entre mãe e filho, o ator e diretor também representa os dois papéis.
Assim, ao invés dos esportes praticados pelos irmãos, Guillaume prefere as aulas de piano ou dar vazão a seus precoces talentos artísticos representando, sozinho em seu quarto, personagens femininos históricos, tais como o da imperatriz Sissi e o de sua sogra. Sua atitude não só não o aproxima da mãe, como provoca o desprezo e a incompreensão generalizada de quase toda a família. Convencido de sua homossexualidade, o pai, o mais homofóbico de todos, considera o filho como um doente e o obriga a vistar psiquiatras, psicanalistas e procura constantemente distanciá-lo do seio familiar, internando-o, possivelmente por vergonha, em pensões no exterior.
Se a família parece não ter dúvidas quanto à homossexualidade de Guillaume, atitude corroborada pelo comportamento do personagem, todas as tentativas de experiências com outros homens são frustradas. A instância narrativa mostra um filho fragilizado assumindo uma identidade sexual que não parece ser a sua, mas aquela que esperavam que ele tivesse, que procura corresponder à expectativa que tinham dele e que ele aceita, esperando agradar e tirar proveito. A descoberta de uma identidade sexual diferente daquela que lhe haviam forjado surpreende e choca a família. A descoberta da sexualidade serve também de marco zero de sua independência, de sua maturidade, na medida em que ela simboliza a ruptura do cordão umbilical que o unia a seu clã. Ele deixa de ser a marionete da família. Por isso o filme começa e termina com o Guillaume de seu one man show, que é ao mesmo tempo o enunciador-narrador e o homem Guillaume Galliene, figura do presente, e não com o Guillaume manipulado, personagem da ficção cinematográfica, o enunciado-narrado, figura do passado.
O filme, que ganhou 5 César (o Oscar do cinema francês), incluindo os de melhor filme e melhor ator (mais por conta do vergonhoso boicote da classe cinematográfica local ao filme e à pessoa de Abdellatif Kechiche, que por seus próprios méritos), é um excelente trabalho sobre o processo de criação e encarnação dos personagens pelos atores. Guillaume, o personagem em busca de sua sexualidade, passa o tempo observando as pessoas, seus gestos, suas entonações verbais, a forma de andar e de se vestir para melhor imitá-las, representá-las. Aliás, todo o filme parece um laboratório sobre o trabalho de ator, do ator como o poeta-fingidor de Fernando Pessoa, capaz de convencer as pessoas de que ele é o que ele representa, de incarnar um personagem a partir daquilo que se espera dele ou, por outro lado, de trair e decepcionar essa expectativa. A vida, como disseram outros atores no passado, funcionando como um grande laboratório cênico.
Nesse sentido o trabalho do ator Guillaume Gallieni, que representa seu próprio papel da adolescência à fase adulta sem recorrer a atores mirins ou à maquiagem, é simplesmente maravilhoso. Com a descoberta de sua própria identidade sexual, a representação do ator muda completamente. Ele deixa de ser o adolescente retardado e vira um homem. E essa evolução é sutilmente visível no corpo do ator. Do timbre vocal à postura corporal, passando pela forma de andar, tudo torna-se diferente em um maravilhoso trabalho de ator.
Um dos primeiros planos do filme define um dos postulados da instância narrativa que, ao contar a história na primeira pessoa, transforma o filme em uma espécie de obra testemunhal, narrada na primeira pessoa. Minutos antes de subir ao palco para contar a história de sua vida, o ator desiste de maquiar-se. Ele prefere entrar de cara limpa, assumindo a pele do Guillaume, o homem e não o ator. E é esse ser de cara limpa que narra, a partir do palco, as histórias que são ficcionalizadas pelo filme, misturando o espetáculo teatral com o cinematográfico. A escolha do plano sequência para as duas curtas sequências no início e no final do filme, com a câmara posicionada atrás do ator, submissa a ele, assim como o close no bilhete da mãe do plano final reforçam esse desejo de realismo da narração.
"Eu, Mamãe e os Meninos" - título infeliz que atenua a cruel ironia da frase enunciada pela mãe, além de eliminar a sutileza jocosa do original francês - apresenta alguns momentos muito engraçados, além de algumas criticas ao comportamento preconceituoso e conservador da elite católica do oeste de Paris.