Praia do Futuro parte de uma mesma situação de perda, vácuo, falta. E que atinge com forte impacto dois homens: um desportista de motocross que perde seu companheiro de esporte e de viagem, e um guarda-vidas que perde, pela primeira vez, uma pessoa que estava se afogando. De alguma forma, esses dois homens que sofrem exatamente a mesma perda, vão tentar preencher o vazio deixado pela mesma morte, um com o outro. A esta perda comum, o guarda-vidas vai somar (e criar) outras: deixa sua terra natal (o Brasil) para morar na Alemanha com o motociclista que sobreviveu ao afogamento ocorrido na praia de belo nome que serve de título ao filme. E ao deixar sua pátria, Donato também não deixa pistas para sua família, estabelecendo outra perda para seu irmão mais novo, Ayrton. Anos depois, já homem feito, Ayrton vai à Alemanha em busca de Donato, com um misto de ressentimento e, claro, afeto, tendo experimentado dolorosamente sua lacuna particular deixada pelo sumiço do irmão mais velho. Em algum momento Donato, Konrad e Ayrton serão vistos andando de moto, como que tamponando de outra forma a antiga falta básica que havia sido deixada pelo morto, agora talvez preenchida por um terceiro, já em uma época em que até a relação íntima entre Donato e Konrad já acabou.
A abertura do filme é magnífica: vemos duas motos circulando pelo areal, seguindo-se o mergulho dos dois estrangeiros nas águas traiçoeiras da Praia do Futuro. As cenas de afogamento e tentativas de resgate são de tirar o fôlego. O título do “primeiro ato” (o filme se organiza em três partes com subtítulos) é aberto a múltiplas interpretações: “O Abraço do afogado” é conhecida expressão que adverte para o risco de quem pretende salvar outra pessoa que esteja se afogando; sem técnica, o pretenso salvador pode ser puxado para o fundo em vez de conseguir manter a si e ao outro (em pânico) na superfície da água. Não é o que acontece com Donato, ele não se afoga, mas de algum modo, é tragado existencialmente pelo “abraço do afogado”, não tolerando ter perdido um salvamento. E talvez não podendo deixar de viver sua atração pelo corpo masculino... mas isso o enredo não quer explicar. Os atores Wagner Moura e Clemens Schick vem minimizando em entrevistas a homossexualidade de seus personagens como fator importante para a história, o que, no entanto, é fundamental para o modo como irão levar adiante suas tentativas de suprir a perda vivida. Minimizar esse traço dos personagens também parece ser a intenção do filme quando, sem nenhuma indicação prévia da homossexualidade em Donato, joga uma cena íntima entre os dois na tela, o que não pode deixar de surpreender o público pelo modo como tal condição de Donato é revelada.
A segunda parte do filme começa a dar mostras de que as lacunas entre cenas (e épocas) fazem mais falta do que o projeto parece - intencionalmente – pretender. Isto se acentua ainda mais na terceira parte, quando o roteiro core o risco de ficar insatisfatório para o espectador. Essa forma de desenvolver os personagens já havia prejudicado em grau bem maior o filme anterior do cineasta, Abismo Prateado. E, por mais que o diretor Karim Ainouz e seu co-roteirista Felipe Bragança pretendam fazer um modo de narrar abusando de tais elipses (elipses de momentos fundamentais no arco dos personagens) o que fica é mais a impressão de um cacoete estilístico do que algo que sirva bem à narrativa.
Voltando ao tema da homossexualidade, os roteiristas parecem até mesmo querer fazer blague com o espectador desconfortável com as motivações não explicitadas de Donato ao colocar uma leitura reducionista na boca de Ayrton quando reencontra o irmão: “Você é um viado egoísta que gosta de transar com os caras aqui do norte” (cito de memória, algo que é ainda mais cru e ressentido). Por outro lado, Wagner Moura parece tentar “explicar” um pouco mais o desconforto existencial do personagem através de seus silêncios, pausas, expressões facial e corporal. O ator quase supre o que os roteiristas escondem do personagem, mas os autores não querem mesmo deixar nada mais claro. Fugiu para viver sua homossexualidade? Quais outras questões atormentam Donato?
Como ponto a favor do filme, também a narrativa visual de Karim é das mais bonitas que bateram na tela recentemente: não é só a fotografia admirável de Ali Olay Gözkaya, mas ainda os enquadramentos elegantes e climáticos, além da edição de Isabela Monteiro de Castro. É o olhar da câmera do cineasta, enfim, que faz do filme, sob o ponto de vista estritamente cinematográfico, pungente e afetuoso. Muito mais do que o roteiro intencionalmente omisso - e que não ajuda a interpretação do personagem de Clemens Schick, o que quase não denota nenhuma mudança dos três. Já Jesuíta Barbosa também consegue dimensionar seu ‘Ayrton’ a partir de uma presença corporal forte (nesse caso, favorecida pelo roteiro quando mostra o reencontro dos dois irmãos como uma briga/abraço/luta/afeto).
Mas o modo de desenvolver o fiapo de história em que se transforma a complexidade inicial de Donato pode diminuir bastante a adesão do espectador ao que bate com tanta beleza plástica na tela. Beleza que é quase o que fica à medida que o filme avança e as informações sobre o arco do personagem se esgarçam em demasia.