Uma boa maneira do espectador se aproximar de Amar, Beber e Cantar é lembrar que seu diretor, Alain Resnais, nunca temeu que a essência cinematográfica de sua obra fosse anulada pela teatralidade - e seus artifícios – frequentes em vários de seus filmes.
Este aspecto pode ser encontrado (inicialmente apenas em termos sonoros) na fala recitada de Emanuelle Riva, com ritmo escandido (e “menos natural”) para o texto de Margueritte Duras em Hiroshima, meu amor (1959). Mas também nas expressões corporais afetadas de Delphine Seyrig (e dos demais atores) em Ano Passado em Marienbad (1961) - que também exigia da atriz e do ator principal “falas declamadas”. Uma das primeiras cenas deste filme mostrava um palco com atores em posições que mais lembravam marionetes.
A partir de Providence (1977), Resnais passou a utilizar com maior frequência cenários como que destinados ao palco, telões pintados em cores fortes, sem a menor preocupação em esconder sua artificialidade. Pelo contrário, enfatizando-a.
Como variações da conhecida tela de Magritte, “Isto não é um cachimbo” (porque apenas uma pintura que representa um cachimbo), Resnais parecia querer nos dizer, desde Melô (1986), que seus filmes não seriam um pretenso registro da realidade - porque "apenas" a filmagem de uma espécie de representação de feitio teatral, com tudo que o teatro tem de “artifício” - em oposição à ilusão que o cinema mais rotineiro parece buscar criar, a ilusão de uma realidade. Sendo que tamanha estilização pode se constituir em retrato mais verdadeiro sobre nossa pequena humanidade do que milhares de esforços “realistas” e/ou “naturalistas”
Como ponto de partida, a frase “Você não viu nada em Hiroshima” era dita reiteradamente pelo personagem do homem japonês para a de sua amante francesa no primeiro longa de ficção de Resnais - surgido do que foi originalmente a encomenda de um documentário sobre a primeira cidade em que foi jogada a bomba atômica. Mas a mulher tentava dizer que ela havia visto, sim, tudo, em Hiroshima: no museu, vira as fotos relativas à hecatombe, como as dos nascidos com deformidades e dos que sofreram lesões imediatas - ou tardias; e a pele, e os cabelos que se soltaram da cabeça das pessoas expostas à radiação do que parecia ser “mil sóis”; e as sombras fixadas no asfalto, de pessoas desintegradas pela explosão nuclear... E o homem repetia que ela não havia visto nada de Hiroshima...
Não por acaso, o filme anterior de Resnais, lançado em 2012, quase que retornando ao início, teve como título Vocês ainda não viram nada! (Vous n'avez encore rien vu no original), ecoando a fala do mencionado personagem japonês. E também sugerindo que poderia ser a obra-testamento do cineasta que, aos 89 anos já se via mais próximo da morte. E o mote era mesmo a morte de um escritor teatral que deixara uma convocação para atores seus amigos porque haviam trabalhado em diferentes encenações de sua peça “Eurídice” – aquela da lenda cujo amado e inconsolável Orfeu tentaria resgatar do reino dos mortos. E Resnais recorria, mais uma vez, a vários atores que estiveram em seus filmes das últimas décadas, dando um aspecto semiautobiográfico à situação - ou não, se tudo for (fosse?) artifício.
Ele morreria em março deste ano e depois de concluir este Aimer, boire et chanter (título original), no qual novamente é a morte, no caso a morte próxima de alguém, o motor do enredo.
Dos seis personagens (à procura de um filme?), três estão ensaiando uma peça como amadores ao lado daquele que recebeu o diagnóstico sombrio (e que nunca será visto no filme). E se os primeiros diálogos são do texto teatral que um casal está ensaiando em casa, o ambiente em que esta ação transcorre é de um dos jardins artificiais que veremos várias vezes: evidentes cenários, com “portas” para dentro de casas que lembram passagens para coxias de palcos: lâminas emborrachadas que facilmente dão passagem através delas.
Além do aspecto teatral, outra fascinação de Resnais, pelas histórias em quadrinhos (durante anos alimentou a ideia de filmar o mágico Mandrake) se faz presente nas “mudanças de cenas”, interregnos com ilustrações das ruas e das casas onde residem os personagens, lembrando padrões clássicos de desenhos de quadrinhos. Quando os atores falam em close, o fundo é um trançado de linhas, como os que muitas vezes eram usados também em quadrinhos antigos. Já os caminhos entre as casas são filmados, possivelmente em locações inglesas (ou em ambientes naturais que passam por ingleses), já que a ação se passa em York, e o roteiro é baseado em peça do britânico Alan Ayckbourn, o mesmo escritor que teve outras peças filmadas “teatralmente” por Resnais: Smoking/No Smoking (1993) e “Medos privados em lugares públicos” (2006). O espectador é como que informado do que pode ser o final de cada "ato" com uma imagem da casa (lembrando um pequeno castelo) do personagem que vai morrer: em desenho à moda de comics e em cenário de estúdio, intencionalmente não-natural. E na trilha sonora, trecho de uma valsa de Strauss, quase uma comédia de boulevard.
Sem chegar a formar um díptico como no caso de Smoking/Not Smoking, a obra final de Resnais faz contraponto/par com o penúltimo filme, sendo uma abordagem mais ligeira sobre o tema da morte (para os que continuarão vivos). E mais bem sucedida do que outros “divertimentos” que o cineasta quis fazer nos últimos anos, especialmente mais satisfatório do que o frustrante Ervas daninhas de 2009.
Se o diretor já foi considerado o “cineasta do tempo” ou “da memória” por seus primeiros filmes, especialmente os dois primeiros, Hiroshima e Marienbad, obras máximas, revolucionárias e de importância indiscutível na história do cinema (e que nem ele mesmo suplantaria, apesar de ter realizado tantos outros filmes maravilhosos e melhores do que centenas e centenas de filmes de outros - bons - diretores), cabe lembrar que a busca pela leveza e divertimento também já não era estranha ao enigmático Marienbad - no qual já se descobriu cena que traz uma silhueta quase igual à de Hitchcock. Esta explicitação do que é ilusório na imagem diegética do filme, sublinhada como “teatral”, é a característica mais marcante da parte final da obra deste cineasta sem par e sempre original.