Críticas


GAROTA EXEMPLAR

De: DAVID FINCHER
Com: BEN AFFLECK, ROSAMUND PIKE, NEIL PATRICK HARRIS
02.10.2014
Por Gabriel Papaléo
Ambicioso retrato social em que David Fincher mostra que o cinismo é a melhor forma de reagir a um teatro incessante de aparências.

Em A Rede Social, Mark Zuckerberg precisou lidar com a incapacidade de se comunicar no mundo interconectado que ele mesmo criou; em Clube da Luta, o narrador escapou da insônia bolando um manifesto pró-homem que viria a perder o controle; em Millennium, Mikael foi procurar um assassino e descobriu que os homens que não amavam as mulheres viviam no coração da Suécia. Nos filmes de David Fincher, os protagonistas frequentemente enfrentam situações micro para resolver os problemas macro do caos social - e, no processo, tem suas relações com as mulheres colocadas em jogo. Dessa forma, Garota Exemplar não só é um exemplar perfeito na filmografia do diretor como busca uma dimensão satírica que evolui a briga entre homens e mulheres sempre mostrada em seus filmes.

A começar pelo personagem vivido por Ben Affleck. Irresponsável e desligado ("você não sabe se a sua mulher tinha amigos?"), Nick demonstra inépcia diante da pressão, com um comportamento disperso diante das câmeras do noticiário que só aumenta a dúvida pelo personagem. Os lampejos de raiva de Nick, como o copo quebrado e os punhos ocasionalmente cerrados, são exemplos de sua vulnerabilidade. O equilíbrio que é trazido pela relação com a irmã é o que o mantém sempre conectado ao público, e Affleck capta com perfeição o carisma e a falta de esperteza de Nick.

A construção psicológica de Amy, oposta a de Nick, usa os flashbacks do diário dela para decifrar a perfeição da garota exemplar do título. O uso da imagem de sua infância para criar a série de livros escrita pelos pais indica uma insegurança de personalidade que é contornada pela mulher na relação com o marido. Por fragmentos ao longo dos cinco anos de casamento, conhecemos a personagem com pequenas ações, e a partir daí observaMOS o quanto o papel de Nick como marido é recebido com uma estranha sobriedade pela esposa.

A não-linearidade no início, apresentando concomitantemente flashes da relação entre Nick e Amy, gera causa e efeito quase imediata em determinadas ações: quando o casamento chega a um estado detestável, a situação presente do homem se afunila ("E de repente, tudo piorou"). Nisso, o véu da realidade idealizada começa a se desfazer (o abraço de Nick nos pais de Amy é quase desconfortável), e as pistas deixadas também são usadas como comentário sobre o que há de falso no próprio suspense (similar a o que o diretor fez em Vidas em Jogo, quando tornou texto o subtexto moral do personagem).

Após o primeiro ato denso, cheio de sugestões (o plano-detalhe no celular, o obcecado por Amy) e atmosfera de filme policial de investigação que o diretor sabe fazer bem, a reviravolta que segue dá uma nova escala aos acontecimentos, sutilezas que repensam o primeiro ato (a divertida e brilhante cena da cuspida sendo ótimo exemplo), mudando principalmente o tom do que ocorre. As especulações jornalísticas entram com mais força para mediar os fatos, provocando um cinismo que se aproxima da sátira naquele drama, e até o que há de mais violento ganha uma camada de exagero. Não por acaso, a primeira cena após essa ruptura é filmada com um ensolarado falso que é novidade na carreira do diretor. É como se Fincher deslegitimasse a realidade expondo o que é mais irreal no tratamento que a opinião pública confere aos que entram em evidência.

Opinião pública essa, moralista e interpretada com toda a ironia que o diretor já usava em Clube da Luta, que se estende para a posição das mulheres em um mundo machista - tema também caro ao diretor. Após a dúvida acerca de Nick se instalar, a simpatia de pessoas ao redor dos Estados Unidos pelo homem também cresce, mesmo que em pequenas proporções. No entanto, o absurdo da moralidade dali é exposto quando é revelada a infidelidade de Nick: a simpatia das mulheres anônimas converte-se em ódio, e todas que têm que lidar com o protagonista passam a encará-lo com desprezo. Levado pela mídia escandalizada, que chega a sugerir incesto apenas por audiência, o público passa a encarar o caso extraconjugal como algo mais grave que possível assassinato - o que Fincher filma com um misto de ironia e urgência que concebe momentos magistrais como a exposição da mentira midiática em um encontro no final.

Nessa camada de discussão, Margo, a irmã de Nick, é fundamental para o comentário proposto por Fincher porque apresenta uma reação diferente das outras mulheres dali. Não abre mão de culpar a falha conjugal de Nick (e sua reação todas as vezes que o assunto é comentado), mas acredita que o irmão deva ser punido justamente pelo que fez, sem um prejulgamento midiático que leva as massas à cegueira irresponsável. Margo, então, é um contraponto à Amy, e demonstrar que a forma de reagir à guerra dos sexos diz muito sobre o caráter psicológico dos personagens amplia o escopo da trama de Gillian Flynn.

Fincher reconhece a misoginia presente na sociedade e a utiliza para criticá-la com propriedade (é curioso que o diretor seja acusado de misoginia; a discussão presente no filme deixa claro que não será aqui que a acusação cessará). As dificuldades enfrentadas pelo feminino em um mundo regido por homens problemáticos vira texto em Garota Exemplar, um ambicioso retrato social que demonstra que David Fincher entende que o cinismo é a melhor forma de reagir a um teatro incessante de aparências.

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