Críticas


RELATOS SELVAGENS

De: DAMIÁN SZIFRÓN
Com: RICARDO DARIN, JULIETA ZYLBEBERG, ERICA RIVAS, LEONARDO SBARAGLIA, DARIO GRANDINETTI,
24.10.2014
Por Luiz Fernando Gallego
Lançado aqui no final de uma campanha eleitoral raivosa, pode ser visto como encenação de fantasias de mentes mais radicais.

Nada como a arte para “realizar” nossos mais ocultos desejos, por vezes inconfessáveis: tais como um ataque, mesmo que suicida, a nossos desafetos sem o álibi da pretensa justificativa “política” ou “religiosa” dos homens-bomba. Ou a concretização de pensamentos fugazes que todos podemos ter, mas que – ainda bem – não os executamos: “tomara que esse motorista que quase me deu uma fechada se arrebente ali adiante”, “quero mais que tal pessoa morra”, ou ainda “se eu pudesse, eu matava esse político mau-caráter, ladrão e corrupto”. Lançado no Brasil na reta final de uma campanha eleitoral que transbordou de maniqueísmo e reducionismo raivoso, esta produção argentina em co-produçao espanhola (via Almodóvar) pode ser vista como que encenando a concretização das fantasias mais destrutivas que estiveram (e estão) nas mentes polarizadas dos eleitores mais radicais: são cinco “relatos” e um prólogo - que é o melhor do filme – nos quais o ressentimento dá as cartas, quebra a banca e acaba em um jogo de apostas existenciais na base de “quanto mais ódio melhor”.

No primeiro episódio, após os créditos, a fúria se volta contra um personagem dito mafioso que agora pretende concorrer a cargo político. Tomara que os eleitores mais raivosos não o vejam!

A selvageria sobre rodas propicia um embate entre dois motoristas potencialmente destrutivos: um, em carro novo de luxo, e outro, num calhambeque que se arrasta em autopista sem deixar que o mais potente o ultrapasse: cada ação imbecil de um deles corresponde a uma reação desproporcionalmente mais cretina do outro em espiral ascendente de ódio (e descendente em resíduos de processos civilizatórios de convivência) com humor negro (nigérrimo) demonstrando até onde pode chegar o patético absurdo da insensatez humana.

Além do estímulo extra devido à admiração de nossas plateias pelo ator Ricardo Darín, os brasileiros, e talvez mais especialmente os cariocas, terão mais de um fator de identificação com a história central do filme: há a "indústria das multas" (de trânsito), a bur(r)ocracia governamental e o menosprezo pela cidadania que, juntos, levam o personagem ao desespero. Mas neste segmento, o diretor-roteirista Damián Szifrón começa a dar sinais de ter dificuldade no sentido de concluir bem o que começou com ótimas premissas - no entanto, evoluindo para desfechos insatisfatórios. Aqui, de certa forma, deixa a impressão de querer poupar a persona simpática do ator.

No trecho seguinte, um afiado retrato que explora até onde podem chegar os privilégios de quem tem dinheiro e poder para escapar de responsabilidades civis e criminais. Há também a reprodução da mesma cupidez dos poderosos por parte de todos os envolvidos na busca de um bode expiatório, expondo a corrupção latente nos corações humanos, pronta para se tornar manifesta. O bom enredo sofre um final abrupto menos esperto do que o que vinha sendo desenvolvido até então.

Deixado para ser the last but not the least, temos uma super-festa de casamento que acaba tendo revelada a hipocrisia que tais comemorações e rituais espetaculares podem encobrir. Quase atinge o nonsense furioso do episódio dos motoristas, mas não abre mão de um, mais um e ainda mais outro “final". O episódio parece que termina, mas prossegue, acumulado "finais" que esticam uma piada que vinha sendo bem explorada.

Freud dizia que além do prazer estético, as obras de arte podiam liberar prazeres inconscientes ligados a aspectos subterrâneos das inclinações mais ocultas e que não revelamos nem para nós mesmos. O lado mais inconformado, ressentido, vingativo e até mesmo sádico das plateias pode estar levando o filme ao estrondoso sucesso de público na Argentina, o que talvez se reproduza aqui. Mas será difícil deixar de lado a sensação de que o filme começa melhor no prólogo, o mais inspirado desses relatos mais do que “selvagens”: demasiadamente humanos.

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