Mil Vezes Boa Noite já mereceria atenção, que mais não fosse, pela proposta de tratar temas relevantes de modo reflexivo - coisa rara no cinema atual. Neste caso, reflete não só, mas sobretudo, pelas imagens admiráveis do cinegrafista John Christian Rosenlund - além das fotografias estáticas que fazem parte da trama e servem para questões relativas a característica imagética que é a base mesmo do cinema.
O foco é na fotografia jornalística, o que nos permite pensar, por exemplo, sobre clichês: uma imagem pode mesmo valer mais do que mil palavras? E sobre questões mais complexas: haveria uma ética quando o fotógrafo se apropria da imagem de uma pessoa que sofre por questões políticas, miséria, guerras... enfim: por tudo o que não seria “humanitário”? E o que justifica a divulgação de imagens tão pavorosas? A pretensão de que possam provocar uma reação global de repúdio à situação fotografada? Isso acontece? Ou há risco de banalização das imagens de impacto numa época onde tudo que é imagem ocupa um espaço excessivo?
Através da construção de uma ficção, o roteiro vai sugerir algumas dessas questões ao tratar especialmente do que faz uma pessoa assumir os riscos de trabalhar em zonas de conflito. No caso, uma fotógrafa talentosa chamada Rebecca, respeitadíssima pelo que faz e por como faz, vivida - mais uma vez – de modo exemplar por Juliette Binoche. O conflito que percorre toda a projeção se dá entre a arriscada condição profissional de Rebecca e sua família: marido e duas filhas, uma delas já adolescente, todos sempre em suspense, temendo que ela não volte de uma região de guerra ou violência desmedida.
O filme começa com uma grande sequência de impacto (literal) deixando a impressão que Rebecca foi ainda mais longe do que nunca em matéria de se expor a riscos, deixando Marcus, o marido (Nikolaj Coster-Waldau, de Game of Thrones), especialmente ressentido - e inclinado a perceber o relacionamento entre eles como tendo chegado a um limite que ele já não pode suportar.
Inicialmente, e na maior parte do filme, o enredo é bem desenvolvido na colocação das tendências conflitantes, tanto pelo que é dito e discutido entre os personagens, como pelos bons desempenhos dos atores - com destaque para a jovem Lauryn Canny como Steph, a filha adolescente - além da já conhecida capacidade de Juliette Binoche de praticamente “dizer”, até sem palavras, o que suas personagens “pensam” através da intensidade expressiva de seu rosto. Atriz inquieta e corajosa, Binoche não vinha dando sorte em suas incursões em obras pretensiosas de novos diretores (ou mesmo já conhecidos), bastante frustrantes.
Por outro lado, a ambição do diretor Erik Poppe (ele mesmo um ex-fotógrafo de zonas de conflito) em estabelecer uma frequente oscilação nas inclinações da fotógrafa, ambivalente entre sua carreira e o papel de mãe e esposa, faz com que o roteiro (dele com um colaborador habitual) não só resulte em um filme que se alonga um pouco (mesmo que nunca fique desinteressante) para dar conta da ambiguidade da personagem, chegando a utilizar algumas soluções dramatúrgicas nem sempre satisfatórias para manter em foco as indecisões de Rebecca. É assim quando Steph se interessa mais pelo trabalho da mãe, não ficando totalmente convincente o estímulo dado pelo pai. O discurso desta filha em uma apresentação do colégio é bem pouco convincente, apesar da jovem atriz minimizar o aspecto forçado de sua fala.
Mais grave é haver uma certa tomada de posição do filme quando alguém comenta que as fotos de Rebecca provocam mesmo mudanças no estado de coisas de uma região abandonada - o que justificaria a importância do seu trabalho (em detrimento da vida pessoal? - ou esta é que é “a” vida de Rebecca?).
Mesmo assim, a conclusão do filme em uma cena com fortes semelhanças com o que foi visto no prólogo, volta a deixar em aberto o que haveria de consequente – ou não - no que Rebecca faz. As passagens menos felizes surgem antes, mais perto do final, mas não chegam a anular aspectos mais bem sucedidos. E que não são poucos. Por um lado Rebecca se sente imbuída de uma missão e explica sua escolha por “raiva” de um mundo que publica mais fotos de qualquer “celebridade“ saltando de um carro sem calcinha do que de gente em situação de miséria, abandono e indiferença mundial, carentes de ajuda para sobreviver. Mas também não faltam cenas e relatos que caracterizam uma verdadeira “fissura” compulsiva da fotógrafa em busca de registrar o que vê de mais impactante. Quase uma dependência química...
Em uma de suas melhores abordagens o filme levanta a questão da interferência do observador no campo observado: Rebecca se culpa - em parte - pelo que acontece na abertura do filme, pelo menos no que diz respeito ao momento e lugar em que aquilo se deu, derrubando a ideia de uma suposta “neutralidade” do repórter quando “testemunha” e - mesmo que seja involuntariamente - participa dos fatos que registra. Fica destruída a premissa ideal de se obter sempre um “registro neutro” jornalístico, o que há tempos já não se sustenta no método de observação científica.
Cinco anos depois do interessante Águas Turvas (exibido apenas em festival no Rio), o norueguês Erik Poppe demonstra em seu novo filme que passou a ser um nome que merece atenção.