
O último filme do cineasta francês Bertrand Bonello preocupa-se mais com a personalidade, o mito e os demônios de Yves Saint Laurent do que com sua vida. Por essa razão, o cineasta aborda apenas uma fase restrita da trajetória do estilista, o que lhe permite abdicar da profusão de detalhes biográficos, muitas vezes desnecessários, para se dedicar ao processo criativo desse grande artista que buscava, a cada desfile, a superação e a fuga da banalidade.
O filme não ignora a genialidade de seu personagem, mas evita a hagiografia gratuita. O Yves Saint Laurent de Bonello é um gênio atormentado, angustiado, eventualmente mimado, mas convencido e consciente de seu imenso talento; um plutocrata que transmite a impressão de comprar suas relações; alguém capaz de conciliar a gentileza e a tirania, a compreensão e a indiferença, e inteiramente voltado para a busca insaciável da satisfação de sua libido e prazeres os mais diversos, dentre os quais se destaca o consumo em abundância de calmantes, drogas e álcool. Seus amigos, que guardam semelhança com um séquito de adoradores e admiradores, são quase todos fagocitados pelo seu caráter, talento e sucesso, o que, aliás, é muito bem representado pelo filme que mostra quase todos os personagens vivendo, de maneira opaca, à sombra do estilista.
A escolha do período de vida parece pouco fortuita, indo de 1967 e do pré-maio de '68, até 1976, quando há toda uma busca e prática de liberdade sexual, emancipação do corpo e expansão da consciência através do consumo de drogas em busca de supostos paraísos artificiais. Era a época do “I don't belong to you and you don't belong to me”, do sentimento de liberdade consequente à revolução comportamental que procurou romper com todos os tabus possíveis, "assassinando o pai" - e a ordem que ele simbolizava. Durante todo o filme há uma única e jocosa alusão ao pai de Saint Laurent. E o próprio personagem de Pierre Bergé, que possui uma postura mais paternalista, protecionista e conscienciosa, é relegado a segundo plano, além de sofrer uma tentativa literal de assassinato. Há uma valorização da juventude que se reflete até mesmo na escolha dos atores do filme - que apresenta alguns dos jovens mais brilhantes do atual cinema francês.
Deixando a preocupação biográfica para o filme Yves Saint Laurent (do cineasta e ator francês Jalil Lespert, lançado no início deste ano), Bonello prefere ater-se mais aos demônios do homem Saint Laurent do que à sua prodigiosa carreira. Assim, ao invés de abordar a ascensão meteórica de seu personagem no mundo da moda (e seu convite, aos 21 anos, para assumir a direção da Dior após a morte de seu fundador), o cineasta prefere mostrar sua frequentação quase cotidiana da mítica boate dos anos '70 chamada “Sept”, a descoberta das drogas e parte de sua movimentada vida sexual.
Em relação às drogas, o filme parece manter um pequeno diálogo à distância com o ensaio de Charles Baudelaire “Paraísos Artificiais”, no qual o poeta francês traça um paralelo entre a criação poética e as drogas. Mas tanto no livro quanto no filme, a droga não é representada como estímulo, mas como uma espécie de despontencializador da energia criativa, simples e necessária busca de transcendentalidade nirvânica que permitisse uma alegria fugaz, impedindo a emergência do tédio. Tanto quanto Baudelaire, Saint Laurent considerava as drogas como um falso amigo, como uma espécie de mal necessário.
Assim como o poeta francês, o estilista procurava o que considerava como fonte de modernidade em todas as suas formas de expressão possível. Ele fez da modernidade uma busca incessante, um sinônimo de sua obra. Como mostra o filme, ele foi um dos primeiros a perceber a importância e a supremacia do prêt-à-porter em relação à alta costura, além de seus vestidos inspirados na obra de grandes pintores, como o famoso “Vestido Mondrian”, ou dos grandes escritores, como Marcel Proust, de quem o artista era um grande admirador (ver a bela, precisa e emocionante leitura que ele faz de um quadro representando o quarto de Proust que ele recebe de presente de Pierre Bergé).
Em determinado momento, a instância narrativa divide o quadro do filme uma primeira vez para demonstrar a influência do contexto histórico na obra do artista que aparece representado como figura de seu tempo. Enquanto à esquerda da tela vemos o desfilar de alguns importantes episódios históricos, à direita aparecem algumas modelos usando roupas do estilista com ligeira influência hippie, asiática ou com cores sombrias para os tempos belicosos.
Modernidade também parece ser o ponto de partida de Bertrand Bonello. A estética de seu filme é impregnada pelo “avantgardismo” do personagem retratado. Algumas sequências do filme são marcadas pelo uso de cores fortes e berrantes que tentam representar, materializar na tela, a experiência psicodélica vivida pelos personagens. Há uma sequência (que não é a única) em uma boate que é exemplar dessa tentativa. Em torno dos personagens que dançam, bebem e flertam há uma profusão de cores que domina todo o ambiente.
Não seria de todo insensato conceber a forma e o estilo do filme como uma grande viagem alucinógena, uma vez que sua história não segue o modelo das narrativas clássicas, com inicio, meio e fim e baseada em uma causalidade progressiva. As sequências, narradas fora de qualquer linearidade e temporalidade cronológica (sobretudo na segunda parte do filme), além de sua montagem elíptica, assemelham-se a esquetes que não chegam a constituir um todo.
Embora isso não seja muito evidente, é possível conceber o filme como a justaposição de dois grandes flashbacks. O primeiro, que abre o filme, mostra o estilista chegando a um hotel para dormir, cansado pelas longas noites insones em razão do intenso consumo de drogas, e utilizando o nome de 'Swann' (outra alusão à Marcel Proust). Tudo o que aparece depois dessa curta sequência [na qual Saint Laurent narra a um jornalista, por telefone, sua iniciação nos calmantes em um hospital militar na Argélia onde nasceu e viveu grande parte de sua infância, e cuja finalidade seria explicar a origem de sua dependência de calmantes] pode ser percebido como uma espécie de flashback ou de imagem mental do estilista. Esta possibilidade pode ser reforçada pelo retorno da sequência, um pouco mais tarde, filmada à partir de um outro ângulo (de um outro ponto de vista ?).
A ideia de flashabck parece ainda mais nítida após a aparição do ator Helmut Berger como Saint Laurent idoso. A partir desse momento a narrativa perde todo o princípio de linearidade presente na primeira parte, e transforma-se em simples superposição de fragmentos memoriais de períodos distintos, podendo parecer eventualmente maneirista para alguns espectadores, quando, na realidade, incorpora-se ao processo de busca de uma certa modernidade do diretor. A utilização de Helmut Berger serve de pretexto para mais uma alusão a Proust, mas também à modernidade do cinema de Luchino Visconti (flagrante particularmente na sequência final), talvez um dos cineastas mais proustianos de todos os tempos e com quem o ator alemão trabalhou em diversos filmes. Neste caso, podemos afirmar que o filme e seus dois flashbacks propor-se-iam a ser uma espécie de “Em Busca do Tempo Perdido” de uma parte da vida de Yves Saint Laurent.
A narrativa de Saint Laurent faz ainda uma associação entre o mundo da moda e a produção cinematográfica. Desta forma, os desenhos do estilista funcionam como uma forma de roteiro ou de storyboard que serão posteriormente fabricados, “encenados”, por uma equipe de assistentes, produtores, iluminadores, músicos, entre tantos outros profissionais. Reforçando o interesse pela criação, que parece valorizar mais a produção como um processo coletivo do que a obra em si mesma, há apenas um grande desfile no filme. E a preparação para esse desfile, que aparece apenas na longa sequência final, constitui um grande momento de cinema. Ao dividir uma outra vez o quadro do filme em uma tela grande acompanhada de pequenos retângulos e quadradinhos mostrando cenas diferentes, Bertrand Bonello parece incorporar em seu cinema a estética de Mondrian que inspirou o estilista.
O belo Saint Laurent de Bertrand Bonello não é uma cinebiografia típica. Quem for assistir ao filme esperando saber mais sobre a vida do estilista corre o risco de decepcionar-se, pois trata-se de um manifesto estético construído mais pelo imaginário cinematográfico de seu diretor do que pela biografia de Yves Saint Laurent.