Leviatã poderia ser visto como um belo filme do ponto de vista de sua fotografia nítida e estetizante, enriquecido por desempenhos afiadíssimos dos atores, assim como por sua organização narrativa, pausada e didática, levando ao que deseja demonstrar. Por outro lado, em muitos desses mesmos aspectos encontramos seus maiores e insuperáveis problemas: assim como o mesquinho, medíocre – mas poderoso - prefeito (Roman Madyanov) quer destruir a casa de Kolya (Aleksey Serebryakov) por interesses pessoais nada comunitários, o diretor Andrey Zvyagintsev quer mostrar, sem deixar nenhuma margem a qualquer dúvida, que é contrário aos mecanismos corruptos que parecem dominar a Rússia de Putin. Isto, através de um microcosmo cujas pedras do tabuleiro foram previamente marcadas e cujas regras do jogo dramatúrgico foram estabelecidas para o resultado final do tipo “como queríamos demonstrar”, clímax de um teorema de óbvia resolução, fácil de ser decifrado sem esforço pela plateia e com excedente de proselitismo - ainda que sua tautológica mensagem traga justa indignação contra tirania & corrupção de mãos dadas contra o bem comum (e contra os indivíduos que se encontram fora da esfera do poder).
O filme tenta dar conta do mal em estado dominante tal como na palavra do título, metáfora explícita, bíblica e hobbesiana, não só pelo significado que o termo conota, mas também pelas imagens recorrentes de podridão que se insinuam em meio à beleza natural, tal como o insistente esqueleto de baleia, utilizado até mesmo no cartaz do filme cuja metáfora visual é reiterada a cada grande passo dado pelo enredo na direção do que Zvyagintsev quer que entendamos, nem precisando desenhar de tão pleonástico que é o seu roteiro.
Surpreende que o cineasta tenha deixado de lado a ambiguidade que fez tão bem ao seu filme anterior, Elena (2011), que elogiamos durante o Festival do Rio 2012 (https://criticos.com.br/?p=2426). Em vez de demonstrar a corrupção que pode existir em todos, inclusive nos mais “desprotegidos” em situação de perda dos valores morais, em Leviatã ele prefere recorrer ao maniqueísmo mais tosco, colocando de um lado o muito-mau-prefeito-Leviatã contra o homem-comum-de-bem-Kolya, ainda que procure mitigar a quase caricatura dos tipos dando traços explosivos ao comportamento de Kolya e, infelizmente, de modo pouco feliz dramaturgicamente, quando relativiza os que estão ao lado de Kolya - como na mal desenvolvida situação estabelecida entre o amigo-advogado de Moscou, Dmitriy (Vladimir Vdovichenkov, que esteve em 360, de Fernando Meirelles), com Lylia, a mulher de Kolya (Elena Lyadova). Ou na atitude de uma amiga de Lylia pensando mal e injustamente de Kolya já perto do previsível desfecho. Mas quem evita de fato que os personagens caiam em estereótipos grosseiros são os atores já mencionados, com destaque para o prefeito vivido por Madyanov, ator que constrói seu vilão em chave naturalista, incorporando um aspecto mais que medíocre - algo equivalente ao de nossos políticos do mais “baixo clero”.
Falando em clero, o roteiro - do próprio cineasta com seu colaborador em Elena, Oleg Negin – também atira na direção do poder religioso aliado ao poder político na cena em que se dá o diálogo de um padre com o prefeito, durante o qual nada é dito explicitamente, mas o recado é dado por alusões a valores religiosos que “justificam” ações destrutivas (como a de fundamentalistas de qualquer credo; no caso, o credo dos que já estão no poder absoluto).
As inúmeras premiações de Leviatã fora da Rússia (cada vez mais forte candidato ao 'Oscar' de filme em língua não-inglesa) nos parecem mais ligadas à sua óbvia metáfora contra Putin e a Rússia atual do que às suas qualidades, mais artesanais do que realmente artísticas. Chega a ser tedioso o contraponto visual insistente das imagens alternadas entre a bela e pura natureza com outras de degradação e podridão - embaladas por deslocada trilha musical extraída de Phlip Glass (uma obsessão do diretor que já havia usado o mesmo compositor de modo totalmente inadequado no mais naturalista Elena). Essa fixação em mostrar a natureza pura e bela, mas envolvendo e sendo corrompida pelo mal que nem mais se esconde nos corações demasiadamente humanos começa a enfraquecer fortemente a carreira do diretor, já que ele se utilizara deste contraponto em O Retorno (2003) e também (pelo que consta nas sinopses) no inédito no Brasil Izgnanie (a.k.a. The Banishment, 2007).
O que Leviatã pretende, dezenas de filmes de forte viés político do cinema brasileiro e italiano dos anos 1960 e ’70 já fizeram melhor, ainda que nem sempre com os mesmos recursos enfeitados de fotografia e com melodias envolventes. Basta lembrar alguns filmes do recentemente falecido Francesco Rosi.
Filmes de tese caminham na corda bamba entre o proselitismo óbvio e o recado criativo, sendo que muitos conseguem naõ derrapar. As ideias transmitidas por uma ficção nunca impediram Brecht ou/e brechtianos, como Joseph Losey, de serem sutis - o que, decidiamente, não é o forte de Zvyagintsev com os 140 alongados minutos desta produção para dizer o que já foi dito tantas e em melhores vezes sobre podres poderes corruptos. E, por favor, pela narrativa pausada deste diretor temos lido equivocadas comparações com a obra de Tarkovski, uma ofensa à memória do falecido “escultor do tempo” que jamais incorreu em obviedades previsíveis desde a primeira meia hora como se dá neste superestimado Leviatã.