Críticas


GAROTAS DO ABC

De: CARLOS REICHENBACH
Com: MICHELLE VALLE, FERNANDO PAVÃO, SELTON MELLO
31.08.2004
Por Susana Schild
O TODO MAIOR DO QUE AS PARTES

Na premiação do 36o Festival do Cinema de Brasília, o júri atribui uma menção especial “ao argumento” de Garotas do ABC, de Carlos Reichenbach. O diretor subiu ao palco e, com sua franqueza característica, disse que não entendeu. Premiar o argumento, afinal, significaria valorizar uma boa idéia que, segundo os jurados, não contou com uma realização à altura. Ironicamente, a exibição foi recebida calorosamente pela platéia de Brasília, a mesma platéia que também vaia ou fica indiferente quando o filme não agrada.

A rigor, ambos os lados – o júri, que fez ressalvas no resultado, e a platéia, que embarcou e aprovou a viagem proposta pela periferia da grande São Paulo – têm suas razões. As razões do júri provavelmente estão ligadas à própria gênese do projeto, que teria como meta a realização de uma série de filmes para acompanhar trabalho, afetos, família e lazer de algumas operárias de uma fábrica de tecelagem. Aurélia Schwarzenega (a estreante Michele Valle) seria apenas a primeira delas. Por isso, personagens incompletos, como boa parte das colegas de Aurélia, e situações precariamente desenvolvidas podem transmitir um resultado insatisfatório no sentido essencialmente dramático de desenvolvimento da trama e das personagens.

No entanto, nos filmes de Carlos Reichenbach, o todo costuma ser maior do que a soma das partes, um todo em que eventuais imperfeições ou asperezas parecem compensadas por um evidente e vigoroso corpo a corpo do diretor com a obra. Diretamente ligado a Anjos do Arrabalde –filme que acompanha com solidariedade explícita a vida de professoras também na periferia de São Paulo – Garotas do ABC também acompanha o cotidiano de uma jovem tecelã negra, a bela Aurélia, apaixonada pelo astro de Hollywood, hoje governador da Califórnia. Ela é também o eixo da trama e fio condutor entre tensões que ocorrem na fábrica, na família (o patriarca é interpretado por Antonio Pitanga), no lazer e, sobretudo, em torno das ligações perigosas que tem com um namorado envolvido com um neofascista interpretado por Selton Mello.

Garotas do ABC se desenvolve através de fortes contrastes – a delicadeza de algumas operárias, a solidez de alguns núcleos familiares em oposição à virulência e violência de uma turma da pesada, que se concentra em torno de uma mesa de bilhar, onde marginais de vários calibres se confrontam, sem meios tons. E é nesse cenário que Sofia (Vera Mancini) se destaca como exemplo de excluídos sem possibilidades de redenção, atuação merecidamente premiada com um Candango de melhor coadjuvante. Enio Gonçalves, no papel de jornalista, também levou o Candango de coadjuvante. A trama, com vários núcleos de ação, é narrada com grande liberdade, a mesma liberdade que norteou a criação de um cantor fictício, Sam Ray, para substituir Marvin Gaye, o verdadeiro ídolo das operárias, fora do filme por impossibilidade de pagamento dos direitos autorais.

Com eficiente fotografia de Jacob Sarmento Solitrenick (Bellini, a esfinge), Garotas do ABC recusa fórmulas narrativas convencionais para criar um painel social, muitas vezes imperfeito e situações nem sempre compreensíveis, mas de inegável força e despudor com a marca de Carlos Reichenbach.



# GAROTAS DO ABC

Brasil, 2003

Direção: CARLOS REICHENBACH

Roteiro: CARLOS REICHENBACH e FERNANDO BONASSI

Produção: SARA SILVEIRA

Fotografia: JACOB SARMENTO SOLITRENICK

Montagem: CRISTINA AMARAL

Trilha Sonora: NELSON AYRES

Elenco: MICHELLE VALLE, FERNANDO PAVÃO, SELTON MELLO, VANESSA ALVES, VERA MANCINI, ÊNIO GONÇALVES, NATÁLIA LORDA, LUCIELE DI CAMARGO, VANESSA GOULART, ADRIANO STUART



*Texto publicado originalmente dia 1.12.2003

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