O globo terrestre se dissolve na circunferência de uma máquina de lavar ao final do prólogo de A Face Oculta da Lua. É uma dessas poderosas imagens-síntese que definem um filme. Robert Lepage quer conciliar o “infinitamente banal” com o “infinitamente essencial” através dessa fantasia intra-uterina sobre dois irmãos separados por diferentes estilos de vida que ensaiam uma aproximação logo após a morte da mãe.
O canadense Lepage, um dos grandes encenadores multimídia da atualidade, não tem medo de abrir o compasso de significações em sua obra. Há pouco vimos no Rio e em São Paulo a belíssima montagem por Monique Gardenberg de Os Sete Afluentes do Rio Ota, em que as tragédias de Hiroshima e do Holocausto lançam um rastro de conexões entre personagens distribuídos em diferentes épocas e quadrantes do mundo. Em A Face Oculta da Lua, também baseado em peça homônima igualmente encenada no Brasil por Monique Gardenberg, Lepage toma a corrida espacial como metáfora e linha condutora para discutir o narcisismo moderno, a solidão fundamental do homem e as limitações de uma percepção unidimensional do mundo. Como em Rio Ota, a memória tem um papel fundamental e inspira algumas deliciosas soluções narrativas.
Pode parecer ambicioso demais, e é bom que seja. Enquanto o cinema em geral reduz sua audácia para encaixar-se nos escaninhos do mercado globalizado, Lepage acena com um projeto poético de grande magnitude. Como Chris Marker, Jean-Luc Godard e poucos outros, ele abre o arco de suas articulações para abranger o cotidiano e seus ecos históricos e metafísicos. A figura desse solitário e ranzinza operador de telemarketing que desconhece fatos marcantes da sua família e mostra-se incapaz de estabelecer laços afetivos, mas tem a pretensão de explicar o planeta a supostos seres extra-terrestres, é um retrato patético do ser humano à margem da História – e a flutuante condição canadense não deixa de ser importante aí.
Lepage vive os dois irmãos e dirige sua própria criação com o apetite de um iniciante, embora tenha mais de 20 anos de estrada e outros quatro filmes no currículo. A Face Oculta da Lua (prêmio Fipresci em Berlim 2004) dá provas de sua habilidade em conciliar não apenas o macro e o micro dos temas, mas também a comédia com a reflexão, os recursos do cinema com a mecânica teatral e as potencialidades da imagem com a fermentação da música.
# A FACE OCULTA DA LUA (La Face Cachée de la Lune)
Canadá, 2002
Direção e Roteiro: ROBERT LEPAGE
Elenco: ROBERT LEPAGE, ANNE-MARIE CADIEUX, MARCO POULIN,
CÉLINE BONNIER
Duração: 105 min.