O diretor franco-chileno Raoul Ruiz filma bastante (entre filmes para cinema e TV, longas curtas, etc, mais de 85 realizações), mas com uma voracidade que nunca cai no superficial, no descartável. Um Lugar Entre os Vivos, exibe alguns dos temas prediletos de Ruiz: gosto por histórias que trazem uma dose de mistério / suspense sempre a serviço de um lastro intelectualizado, com recheio de conceitos de filosofia, psicanálise, literatura, personagens vivendo complexas crises de identidade e uma trama meio confusa (com ares de conspiração invisível); por paradoxo, tal trama é conduzida entre o fatalismo de um destino obscuro (como se em certos momentos o diretor não tivesse o comando, e as coisas fossem regidas por casualidades incontroláveis) e um prazer em jogar com personagens em desdobramentos variados de uma forma quase matemática (alguns dos filmes dele parecem evoluir como numa análise combinatória).
Neste caso o filme se passa numa Paris entre o pós-guerra e o começo dos anos 50, na qual um escritor fracassado que vive de traduções recebe oferta bizarra de um homem que diz ser um assassino-em-série: que ele, escritor, escreva livro sobre seus crimes. Jazz, literatura, as correntes intelectuais daquele momento (existencialismo à frente), muita fumaça de cigarros em cafés parisienses frequentados por intelectuais, e a sensação que a qualquer momento Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir irão aparecer na tela como personagens ou figurantes pontuais, bem como a direção propriamente dita e os subtextos da dramaturgia, transmitem aquela habitual carga de erudição lúdica de outros filmes de Ruiz. Logo, o diretor se repete, só que ao invés disto significar reforçar o todo de uma obra coerente, Um Lugar Entre Os Vivos, ainda que correto e com várias qualidades, deixa uma sensação de indolência comodista, pelo tom morno como se desenvolve.
Ruiz tem inegável talento como narrador que vem justamente de uma nonchalance elogiável, uma realização formal relaxada, mas com charme. Aqui essa suavidade vira defeito mesmo, com uma decupagem fracota, planos preguiçosos, como se o tédio relacionado pelas pessoas de um modo geral, e como um clichê, à algumas das figuras e referências usadas na trama (por exemplo, os intelectuais existencialistas), tomasse conta do filme e de uma maneira não dialética. A cena final (sem entregar muito), com aquela discussão sobre desejo de beber / desejo de fumar que é claramente uma piada sofisticada homenageando ao dito sartreano o inferno são os outros, resume o filme: ludismo de uma erudição mais do que válida, desbanca para o cabotinismo artístico, que aos espectadores (conheçam eles ou não a mística a que o filme se refere) pode cansar.
# UM LUGAR ENTRE OS VIVOS (Une place parmi les vivants)
França, 2003
Direção e roteiro: RAOUL RUIZ
Elenco: THIERRY GIBAULT, CHRISTIAN VADIM, VALÉRIE KAPRISKY,CECILE BOIS
Duração: 103 min