“Por que eu sou assim?”, questiona Tirésia, já cego, em determinado momento do filme de Bertrand Bonello. A pergunta se refere particularmente ao dom de antecipar verdades, mas pode ser estendida à construção de algo tão pessoal quanto a subjetividade de cada indivíduo. Inspirado na mitologia grega, o cineasta investe numa obra conectada com o momento atual, marcado, apesar das eventuais resistências, pela constatação de que as classificações tradicionais não são mais suficientes (se é que foram algum dia) para explicar a sexualidade.
Tirésia aborda a possibilidade de mudar o supostamente definitivo – o sexo –, destacando que o ser humano não funciona de acordo com a mera obediência à ordem biológica. Na primeira parte, Tirésia é um transexual (Clara Choveaux) que, ao reunir o masculino e o feminino e simbolizar as consideradas grandes transformações – do mundano para o transcendente, do profano para o sagrado, do carnal para o puro –, surge como uma figura totalizadora que reescreve, de maneira radical, o próprio corpo. Se por um lado a autoria de Tirésia é inegável, por outro Bonello potencializa a polêmica da escolha ao justificar a metamorfose bancada pela personagem como decorrência parcial de situações adversas (“De qualquer maneira... o que foi feito, foi feito”, responde, mais adiante, Tirésia).
Divergências à parte, o livre arbítrio em relação ao corpo não é sinônimo de controle onipotente da estética (por mais recursos artificiais colocados à disposição na contemporaneidade). Ao ser cegado, Tirésia perde por completo o domínio de sua imagem e se torna outro. No filme, literalmente. O formato de corpo feminino vai sendo desfeito e a personagem ganha as feições de um rapaz (não por acaso, interpretado por um outro ator, Thiago Telès), talvez ainda mais expressivo do que a mulher anterior. Antes e depois da transformação, o filme de Bertrand Bonello parece estar centrado no auto(re)conhecimento, numa visão de si mesmo compromissada com esferas profundas e capaz de curar um dos conflitos mais delicados do homem: a distância entre o que cada um imaginou para si e a pessoa que efetivamente acaba se tornando.
Há outros pontos importantes valorizados não só em Tirésia como em O Pornógrafo . Por exemplo, a lembrança de que o ser humano é parte integrante da natureza, tentando anular, portanto, um divórcio ocorrido ao longo do tempo. A evocação de um filme anterior de Bonello também surge em virtude do fazer cinematográfico, realçado aqui pelo aproveitamento da trilha sonora, interrompida, de modo inesperado, em algumas seqüências, em aparente fidelidade ao conceito de que “não há princípio nem fim; nós somos apenas parte das coisas que continuam”.
# TIRÉSIA
França, 2003
Direção: BERTRAND BONELLO
Roteiro: BERTRAND BONELLO, LUCA FAZZI
Fotografia: JOSÉE DESHAIES
Montagem: FABRICE ROUAUD
Trilha Sonora: ALBIN DE LA SIMONE, LAURIE MARKOVITCH
Elenco: LAURENT LUCAS, CLARA CHOVEAUX, THIAGO TELÈS, CÉLIA CATALIFO
Duração: 115 minutos