Críticas


PEQUENA LILI, A

De: CLAUDE MILLER
Com: BERNARD GIRAUDEAU, NICOLE GARCIA, JEAN-PIERRE MARIELLE
16.03.2005
Por Daniel Schenker
A ARTE COMO SALVAÇÃO

A Pequena Lili traz à tona um ponto absolutamente relevante para a discussão contemporânea: a possibilidade de criação de uma obra autônoma a partir de uma primeira (tema desenvolvido pela diretora de teatro Celina Sodré em sua tese de mestrado, intitulada Segundo Original ). O cineasta Claude Miller, no caso, se inspirou numa das quatro grandes peças de Anton Tchekhov, A Gaivota . Uma análise de A Pequena Lili esbarra, portanto, na verificação do teor autoral da “fala” de Miller diante do material original que elegeu.



Na tela grande, o cineasta reproduz o feito de Tchekhov, que amalgamou a esfera pessoal (na desesperada luta de um filho – Treplev na peça, Julien nesta versão – pelo reconhecimento de sua mãe – Arkádina/Mado) à polêmica artística (na captação de um instante de vácuo entre um fazer – teatral no texto do autor russo, cinematográfico em Miller – que se tornou obsoleto, mesmo que permaneça, pelo menos, parcialmente consagrado e um outro novo, rebelde e ainda incompreendido). De início, Claude Miller parece investir em operações externas, encontrando tão-somente correspondentes coloquiais para os diálogos de Tchekhov, decorrência natural de uma transposição para o aqui/agora.



É inegável que A Pequena Lili ilustre, durante dois terços de sua projeção, A Gaivota sem propor algo de novo, a não ser uma valorização da juventude, seja na tentativa de Miller de filmar com o frescor de Treplev/Julien (que não é levada às últimas conseqüências, em que pese o apoio numa delicada trilha sonora), seja na promoção de Nina/Lili, personificada por Ludivine Sagnier, a um posto ainda mais destacado que em Tchekhov. Fora isso, resulta apenas curioso acompanhar a realização de cenas diferentes mas similares ao texto de Tchekhov – por exemplo: a bela seqüência em que Arkádina faz um curativo em Treplev é ilustrada no filme pela passagem em que Julien entra no quarto de Mado, no meio da madrugada, pedindo socorro.



Em todo caso, Claude Miller é ajudado pelo fato de Tchekhov colocar em pauta questões que têm se tornado cada vez mais urgentes com o passar do tempo. Através da raiva externada por Julien em relação a Brice, marido de Mado, o cineasta possibilita ao espectador refletir a respeito de tomadas de posição completamente diversas. De um lado está a impetuosidade de quem entende a arte como manifestação de uma necessidade de expressão pessoal e experimenta sempre sem saber onde vai chegar; do outro aparece a segurança do trabalho tão bem feito quanto acomodado, pronto para ser aplaudido pela falta de ameaça e pelo eventual prazer que proporciona.



Julien sintetiza a figura do artista incompreendido, que não cede à pressão do discurso de que é preciso se fazer entender pelo grande público. Representa a legitimidade daqueles que se disponibilizam a uma comunicação com um número bastante reduzido de espectadores e/ou dos poucos que não vão de encontro a uma mediania. Toda esta exposição periga soar um tanto maniqueísta, como se a realidade pudesse ser reduzida a dois pontos extremos, mas o importante se encontra nos temas das discussões propostas, ainda que até aqui o mérito seja bem mais de Tchekhov do que de Miller.



É só na parte final que Claude Miller investe numa leitura portadora de especificidades. Propõe um corte no tempo e mostra os personagens se reencontrando quatro anos depois, quando Julien está prestes a filmar seu primeiro longa-metragem. Retornam com mais potência os pontos antes destacados, ganhando, agora, algumas dúvidas, felizmente, não respondidas pelo filme. Será que Julien estaria mantendo fidelidade aos princípios artísticos ao filmar munido de uma determinada infra-estratura? Ele teria sido domesticado, em alguma medida, pelas regras de mercado? Esta negociação seria conciliável com a sua proposta autoral?



Também entram em cena a fronteira cada vez mais tênue entre documentário e ficção – no caso de Julien, uma ficção documental, na medida em que calcada no esforço para reproduzir fatos e atmosferas de seu passado – e a busca de salvação através da arte. Se em A Gaivota Treplev se suicida, este acontecimento trágico vira apenas resolução final do enredo do filme de Julien, que se mata na ficção para se salvar na vida.



A PEQUENA LILI (LA PETITE LILI)

França/Canadá, 2003

Direção: CLAUDE MILLER

Roteiro: JULIAN BOIVENT, CLAUDE MILLER

Produção: ANNIE MILLER

Edição: VÉRONIQUE LANGE

Elenco: BERNARD GIRAUDEAU, NICOLE GARCIA, JEAN-PIERRE MARIELLE, LUDIVINE SAGNIER, ANNE LE NY

Duração: 104 minutos

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